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A cultura cervejeira belga, Patrimônio Imaterial da Humanidade

Atualizado: 23 de jul. de 2022

Salve nobres,

Se você gosta de cervejas artesanais e tem o hábito não apenas de beber mas também de saber mais sobre cerveja, você provavelmente deve saber que existem hoje no Mundo quatro grandes escolas cervejeiras: A Escola Alemã, a Escola Belga, a Escola Inglesa e a Escola Norte-Americana. O que talvez você não saiba é que a Escola Belga tem um diferencial com relação às outras três: desde 2016, ela faz parte da Lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, da UNESCO. Mas o que isso significa?


Patrimônio cultural e Patrimônio Imaterial (ou Intangível)

Quando falamos em “patrimônio cultural” a primeira ideia que vem à nossa cabeça é a de monumentos, obras de arte ou mesmo prédios públicos e particulares antigos que são considerados dignos de preservação por diversos motivos. Os motivos mais levantados, geralmente, estão relacionados ao valor estético / estilístico /artístico do bem cultural. Seja uma obra de arte, que uma vez perdida não pode ser recuperada; seja um edifício representativo de um determinado estilo arquitetônico. Com relação aos monumentos, entra em jogo também o valor histórico. Relacionado à história que aquele monumento tem a intenção de preservar (a memória de um fato ou de um personagem), e à história da construção do próprio monumento. Em linhas gerais, se pode dizer que esses bens culturais são preservados tendo em vista quatro grandes “valores culturais”:


1.sua Excepcionalidade: quando o bem é um exemplar único e fora de série (“excepcional”)

2.sua Exemplaridade: quando o bem é um exemplar representativo de um determinado estilo artístico ou arquitetônico.

3. sua Monumentalidade: quando o bem é evocativo da memória e da história de um fato, de um grupo ou de um indivíduo.

4. e sua Autenticidade: que remete à originalidade do bem. Ao fato de não ser uma reconstrução ou uma cópia de outro bem. Ou de não ter sido modificado ou “descaracterizado” ao longo do tempo.


Mas esses bens citados (monumentos, prédios e obras de arte) têm em comum o fato de serem bens materiais. Ou, patrimônio construído (conceito que eu prefiro). Desde as duas últimas décadas do século passado começou-se a discutir que esses valores culturais, muito ligados aos aspectos estéticos dos bens, não eram suficientes para dar conta da diversidade dos bens que podem ser considerados patrimônio cultural. Para exemplificar essa diversidade, podemos ver como a Constituição Brasileira de 1988, no seu artigo 216, define o que seria o patrimônio cultural brasileiro:


Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.


Segundo essa definição, as obras de arte, edificações e conjuntos urbanos são apenas um dos muitos tipos de patrimônio cultural existentes. Pela primeira vez começa a se falar em “patrimônio imaterial ou intangível”. Que podem ser, por exemplo, formas de expressão (como danças e rituais) ou modos de fazer (como o modo de fazer determinado utensílio, como uma panela de barro por exemplo). E se chama a atenção a outros valores, além dos estéticos e artísticos. Principalmente os valores identitários. Ou seja, um patrimônio cultural é algo que faz parte da identidade de um determinado grupo social.


Essa forma mais abrangente de compreender o patrimônio cultural, foi sedimentada em um decreto de 2000, que instituiu a política nacional de preservação do patrimônio imaterial, e abriu espaço para o reconhecimento e preservação de manifestações culturais como, por exemplo, as línguas (sejam as línguas nacionais ou dialetos regionais) e os hábitos alimentares. A esse respeito, já são registrados como patrimônio cultural imaterial brasileiro, por exemplo, o Modo Artesanal de fazer Queijo Minas e o Ofício das Baianas de Acarajé. Hoje pode até parecer óbvio que o idioma, um “prato típico” ou uma bebida façam parte do patrimônio cultural de um grupo social, como constituintes da sua identidade. Mas nem sempre foi assim.


O Patrimônio da Humanidade da UNESCO

Na sua origem, a preservação do patrimônio cultural está diretamente relacionada à construção de identidades nacionais. Em tese, um Estado-nação moderno pode ser definido como um conjunto de indivíduos com uma história, uma cultura e costumes em comum. É claro que essa definição, que nasce lá na virada do século XVIII para o XIX está muito distante da realidade concreta dos Estados-nação do início do século XXI. Que são cada dia maiores, mais multiétnicas e multiculturais. Como ressaltava o cientista político norte-americano Benedict Anderson (1936-2015), “todas as comunidades maiores do que as primitivas aldeias de contato face a face (e, talvez, até mesmo estas) são comunidades imaginadas”. A construção de um patrimônio cultural comum à toda a nação é uma das formas de dar materialidade à essa imaginação (ou a esse projeto político de nação). Ele é um instrumento de construção dessa história e dessa cultura em comum que faz com que, por exemplo, gaúchos e maranhenses consigam se identificar como parte de uma mesma nação.


Mas nas últimas décadas do século XX, ao lado do surgimento do conceito de patrimônio imaterial, se consolida também a ideia de que existem manifestações culturais que, por um lado, dizem respeito a comunidades numericamente menores do que a nação. Para esses grupos, o reconhecimento do seu patrimônio cultural representa um aspecto fundamental para a sua inclusão no corpo da nação. É o caso, no Brasil, de negros e indígenas. E, por outro lado, bens culturais que não deveriam ser considerados patrimônio exclusivo de uma nação mas sim de toda a Humanidade. Ideia que é também um efeito de um mundo globalizado.


Como estamos em um momento histórico de recrudescimento dos nacionalismos, é bom abrir um parêntese aqui para deixar claro que o fato de determinado bem cultural ser considerado um patrimônio da Humanidade não significa que ele deixou de pertencer a uma nação específica. Essas duas categorias não são excludentes. Muito pelo contrário, elas se reforçam. São os Estados Nacionais que fazem os inventários dos seus patrimônios e submetem a reconhecimento pela UNESCO.


Hoje esse patrimônio cultural da Humanidade é composto por monumentos e grupos de edifícios ou sítios que tenham valor histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico. Como, por exemplo, o Taj Mahal (na Índia), a Estátua da Liberdade (nos Estados Unidos), Veneza (aqui na Itália) ou Brasília. O Brasil tem hoje 22 bens mundiais culturais ou naturais reconhecidos pela UNESCO. E é o segundo país da América Latina com maior número de bens. Ficando atrás apenas do México (que tem 31).

Para determinar se algum lugar, conjunto, território ou área pode ser considerado um patrimônio mundial, os seguintes critérios são levados em consideração:

1) Se representa uma obra prima do gênio criativo humano.

2) Se testemunha uma troca considerável de valores humanos, durante um período específico ou em uma área cultural específica do mundo, nos âmbitos da arquitetura ou tecnologia, as artes monumentais, o planejamento urbano ou a criação de paisagens.

3) Se fornece um testemunho único, ou pelo menos excepcional, sobre uma tradição cultural ou uma civilização viva ou desaparecida.

4) Se são um exemplo notável de um tipo de construção, de conjunto arquitetônico ou tecnológico, ou de paisagem que ilustra um ou vários períodos significativos da história humana.

5) Se são um exemplo proeminente de formas tradicionais de assentamento humano ou de utilização da terra ou do mar, representativas de uma cultura (ou várias culturas) ou interação do homem com o meio, especialmente quando este se tornou vulnerável devido ao impacto provocado por alterações irreversíveis.

6) Se estiver direta ou materialmente associado a eventos ou tradições vivas, ideias, crenças ou obras artísticas e literárias que tenham excepcional significado universal.

7) Se representam fenômenos naturais ou áreas de excepcional beleza natural e importância estética.

8) Se são exemplos eminentemente representativos das grandes fases da história da Terra, incluindo o testemunho da vida, dos processos geológicos em curso na evolução das formas terrestres de elementos geomórficos ou fisiográficos significativos.

9) Se são exemplos eminentemente representativos de processos ecológicos e biológicos em curso na evolução e desenvolvimento de ecossistemas terrestres, aquáticos, costeiros e marinhos.

10) Se contiverem os habitats naturais mais representativos e mais importantes para a conservação in situ da diversidade biológica, incluindo aqueles em que espécies ameaçadas que tenham excepcional valor universal do ponto de vista da ciência ou conservação sobrevivam.


Em 2003 foi adotada pela UNESCO a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Esse documento define do Patrimônio Cultural Imaterial da seguinte maneira:


“práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu Patrimônio Cultural. Este patrimônio cultural imaterial que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana”.



As Listas Representativas do Património Cultural Imaterial da Humanidade, criadas pela UNESCO, se dividem em duas:

1. A Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade: Falcoaria (diversos países, como Áustria, Bélgica, Marrocos), a Caligrafia Chinesa (China), Círio de Nazaré (Brasil, desde dezembro de 2013);

2. Lista do Patrimônio cultural Imaterial da Humanidade com Necessidade Urgente de Salvaguarda: Fabrico tradicional de chocalhos em Portugal; Ritual Yaokwa do povo Enawene Nawe do Mato Grosso. É interessante notar que, em sua grande maioria, esse patrimônio imaterial ameaçado está relacionado a grupos minoritários. Principalmente povos originários.


A declaração da cerveja belga como patrimônio imaterial desde 2016

Em 2016, na 11ª reunião do Comitê de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Intangível, decidiu-se por incluir entre os bens culturais dignos de preservação a cultura cervejeira belga. Eu fiz toda essa apresentação teórica para que a gente tenha uma consciência mais clara do que significa dizer que essas cervejas que a gente bebe e que a gente aprecia são bens culturais da Humanidade.


Mas é importante a ressaltar que não são os estilos de cerveja belga, ou as cervejas trapistas ou o modo de produção da cerveja belga que foram declarados Patrimônio Cultural Mundial pela UNESCO, mas a Cultura Cervejeira Belga. Que é algo maior do que um estilo ou um modo de produção. No site da UNESCO, a cultura cervejeira Belga é definida resumidamente da seguinte maneira:


“Fazer e apreciar a cerveja faz parte da herança viva de uma série de comunidades em toda a Bélgica. Desempenha um papel na vida diária, bem como nas ocasiões festivas. Quase 1.500 tipos de cerveja são produzidos no país por diferentes métodos de fermentação. Desde os anos 80, a cerveja artesanal se tornou especialmente popular. Existem certas regiões, que são conhecidas por suas variedades particulares, enquanto algumas comunidades trapistas também se envolveram na produção de cerveja, dando lucros para instituições de caridade. Além disso, a cerveja é usada para cozinhar, inclusive na criação de produtos como o queijo lavado na cerveja e, como no caso do vinho, pode ser combinada com alimentos para complementar os sabores. Existem várias organizações de cervejeiros que trabalham com as comunidades em um nível amplo para defender o consumo responsável de cerveja. A prática sustentável também faz parte da cultura com o incentivo a embalagens recicláveis e novas tecnologias para reduzir o uso de água nos processos produtivos. Além de serem transmitidos no ambiente doméstico e social, conhecimentos e habilidades também são transmitidos por mestres cervejeiros que ministram aulas em cervejarias, cursos universitários especializados voltados para os envolvidos na área e na hotelaria em geral, programas públicos de treinamento para empresários e pequenas cervejarias-teste para cervejeiros amadores.” (https://ich.unesco.org/en/RL/beer-culture-in-belgium-01062)


Essa definição ressalta a presença e a importância da cerveja na vida cotidiana das comunidades belgas, seja como forma de lazer, seja como trabalho, como fonte de renda, e como ingrediente culinário. Presença essa que foi se sedimentando ao longo de séculos, tornando inseparáveis hoje a história da cerveja belga e a própria história cultural da Bélgica. Mas definição faz menção também ao incentivo ao consumo responsável de cerveja e às práticas sustentáveis na sua produção.


A decisão do Comitê apresenta 5 razões para a inclusão da Cultura Cervejeira Belga na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade:

1. O fato dela servir como um marcador de identidade para suas comunidades de cervejeiros, provadores, mediadores e zitólogos. “a cultura da cerveja na Bélgica combina know-how sobre a natureza, práticas sociais e habilidades artesanais que constituem uma parte integrante da vida cotidiana e festiva.” Compartilhados regularmente entre os profissionais, o conhecimento e as habilidades são transmitidos de mestres para aprendizes em cervejarias, mas também dentro das famílias, em espaços públicos e por meio da educação formal. Contribui para a viabilidade económica e social a nível local e para a constituição da identidade social e continuidade dos seus portadores e praticantes, que promovem a produção e o consumo responsáveis;


2. A sua inscrição na Lista contribui para a visibilidade e diversidade do patrimônio cultural imaterial, destacando a especificidade de um elemento que combina artesanato e alimentação, que tem evoluído continuamente para atender aos requisitos de desenvolvimento sustentável. Também serviria como exemplo inspirador de uma prática que foi revivida e cujos valores foram redescobertos e desenvolvidos após terem sido marginalizados; Aqui tem um aspecto da história recente da cerveja belga. Por incrível que pareça, parece ter acontecido com o mercado belga de cerveja o mesmo que aconteceu com outros mercados ao redor do Mundo. A invasão das American Lagers.


3. Chama a atenção para os esforços realizados pela Bélgica para reviver e salvaguardar a cultura cervejeira desde os anos 1970. E para o fato de que as medidas de salvaguarda propostas (como, por exemplo, o desenvolvimento de qualificações profissionais, a promoção do elemento e o estabelecimento de um observatório da diversidade das artes cervejeiras e sua apreciação) levarem em consideração o aumento do consumo de álcool.


4. O envolvimento das comunidades de “detentores do bem cultural”: A Federação dos Cervejeiros Belgas iniciou o processo de nomeação envolvendo cervejeiros, mediadores, professores e o público em geral, que participaram ativamente de uma série de reuniões preparatórias e consultivas e forneceram seu consentimento livre, prévio e informado para a inscrição;


5. O fato da cultura cervejeira belga já fazer parte dos inventários do Patrimônio Imaterial das três grandes comunidades belgas: a comunidade flamenga, a comunidade francesa e a comunidade alemã.


Eu espero que tenha conseguido deixar clara a importância da inscrição da cultura cervejeira belga na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO. Toda essa conversa foi pra tentar dar uma dimensão melhor do valor cultural dessas cervejas que a gente tanto aprecia. Para tentar criar essa consciência de que a gente não está só bebendo cerveja, mas sim bebendo história. Se você quiser, pode também assistir o video que eu fiz sobre esse tema no meu canal do Youtube:


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