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A história da publicidade de cerveja também é uma parte importante da história da cerveja. Aqueles que acompanham o Profano Graal no Instagram sabem que nós temos uma série de posts só sobre propagandas antigas de cerveja. Então, hoje trazemos uma discussão sobre a representação da mulher nas propagandas de cerveja, inspirada pelo artigo Análise do discurso dos anúncios da Antarctica: a presença da figura feminina nas propagandas de cerveja, escrito por Camila Stefani Antunes, Daniele Rodrigues da Silva, Matheus de Mello Cunha; Ana Lúcia Furquim Campos-Toscano.
De maneira geral a publicidade busca criar um clima de confiança e de intimidade com o público consumidor, para promover a venda por meio da divulgação das características de um determinado produto. Mas por meio da publicidade, as empresas não apenas vendem os seus produtos, mas também constroem a imagem da sua marca. Associando o seu produto a determinados valores e estilos de vida. Como afirmam os autores:
É necessário que o consumidor associe o produto com a desejada imagem ou qualidade e, para atingir esse objetivo, é apresentado ao lado de um objeto ou de uma pessoa que possua a referida qualidade. Além disso, há a insistência de que o valor associado à mercadoria seja transferido ao consumidor mediante o ato de compra.
A presença da mulher nas propagandas mais antigas é marcante. Vamos, então, fazer uma exposição de alguns anúncios da Antarctica em ordem cronológica com o objetivo de perceber como a imagem da mulher nas propagandas de cerveja foi se modificando ao longo do século XX.
Logo no início do século temos dois anúncios publicitários da cervejaria, de 1905 e 1910: no de 1905 a mulher aparece com uma criança de colo, e no de 1910 é apenas citada pelo bebê. No primeiro caso, a mãe dá cerveja ao bebê em um caneco de louça em estilo alemão (um “bierkrug”). Essa imagem, que aos nossos olhos de hoje pode parecer estranha, está associada à antiga crença de que beber cerveja preta, do tipo Malzbier, favorecia a produção de leite materno (tem post sobre isso no nosso feed). Enquanto no segundo caso, uma bebê segura uma garrafa de Antarctica dizendo ser a cerveja preferida da sua mãe. Nos dois anúncios, a mulher aparece como mãe (em primeiro lugar), mas também como consumidora da cerveja. Mesmo que não apareça bebendo a cerveja. Isso porque, nessa época ainda se procurava vender a cerveja como uma bebida saudável. Até com propriedades terapêuticas. Indicada para toda a família. O que vai mudar ao longo do século.
No Brasil do início do século XX, as propagandas sofreram influência da Belle Epóque e da Art Nouveau, numa tentativa de aproximação das tendências europeias. Com a imagem da mulher charmosa, ou a mulher como tentação, usando trajes que remetiam às dançarinas de cabaré e a uma sedução mais explícita, como no cartaz da Cerveja Antarctica de 1926. Ao contrário das propagandas anteriores, a mulher aqui já não é mais a consumidora de cerveja. Apesar de aparecer com o copo na mão ela não consome, apenas incentiva o consumo pelo público masculino. A ideia aqui é de equiparar a imagem da mulher à do copo de cerveja. Isso fica explícito, por exemplo, na semelhança da cor do cabelo da mulher com a cor da cerveja. Já há uma exposição maior do corpo da mulher, com pouca roupa. A mulher e a cerveja passam a ideia geral de prazer e refrescância. Cerveja e mulher são consumíveis da mesma maneira.
Não conseguimos encontrar nenhuma propaganda da cervejaria de meados do século onde as mulheres apareçam. O que também é um dado relevante. Que pode querer dizer que a cerveja passa a ser vista como um produto para o consumo exclusivo do público masculino.
Pulamos então para a década de 1980. Na campanha de 1985, intitulada Antarctica, a melhor cerveja do Brasil, as mulheres voltam a aparecer como consumidoras de cerveja. O clima da propaganda é de festa. As mulheres não aparecem como garotas-propaganda da cerveja, não há a exploração do corpo feminino. E a cerveja aparece como um produto de consumo democrático. Feita para ambos os gêneros.
Mas, principalmente nas últimas décadas do século XX, o uso da sensualidade foi o recurso mais utilizado pelos publicitários para desenvolverem suas campanhas. Nessas propagandas, o homem é produtor e principal consumidor e a mulher, um produto de consumo. Surgem propagandas que fazem um paralelo entre a bebida e a mulher. Os anúncios impressos são convidativos e constituem-se como instrumentos para o afloramento da libido e da liberação dos pensamentos e vontades íntimas do público masculino. Nesse tipo de anúncio, há um forte apelo para a virilidade que não se preocupa com a identidade da mulher. Cartazes como o que mostra uma mulher deitada sobre ramos de cevada, com roupas curtas, com o slogan Antarctica. Até a cevada é mais gostosa. Como explicam os autores do texto citado, com esse slogan:
Veicula-se a ideia de que essa cerveja é mais gostosa se comparada às demais marcas, assim como à figura da mulher. (...) Reitera-se também a sensualidade feminina, seja por meio da imagem de uma mulher bonita, de pernas bem delineadas, barriga exposta e a insinuação de seios fartos, seja pela presença do vocábulo “gostosa” no enunciado verbal.
O cenário construído para as propagandas é tipicamente brasileiro. O lugar mais lindo do mundo, o povo mais hospitaleiro, música que encanta, belas praias, o melhor futebol, mas a ênfase está na mulher brasileira, bela, sedutora e têm corpos esculpidos. A estação do ano é sempre o verão, remetendo ao clima de festa. As pessoas presentes têm corpos perfeitos, são jovens, sensuais, felizes e realizadas. E o que dá desculpa para o mínimo de roupa possível. A sedução está figurativizada nas roupas curtas, bem apertadas, que modelam o corpo da mulher, além também do apelo das poses fotográficas e do posicionamento das modelos e atrizes em determinados momentos da cena.
Na propaganda que fala sobre o acasalamento dos pinguins o cenário de praia é próprio para roupas curtas e para a exploração da beleza física e da sensualidade do corpo feminino. Uma vez que o tema é o acasalamento de pinguins (que no caso são os homens e mulheres), as mulheres aparecem como objeto de desejo masculino. Apesar de homens e mulheres aparecerem bebendo cerveja, é nítida a ênfase dada aos corpos femininos. Como afirmam os autores do texto: "No verão brasileiro há mulheres bonitas, sensuais, mas também há a cerveja Antarctica que refresca e proporciona prazer. Nessa ambiência, mulher e cerveja equivalem-se”.
Em 2008, a Antarctica lança a campanha denominada Bar da BOA, estrelada pela atriz Juliana Paes. O texto da propaganda é repleto de ambiguidades. A “boa” nessa campanha pode referir-se tanto a cerveja quando a própria Juliana Paes, que faz o papel de dona do bar ou garçonete. A mulher “boa” é aquela que tem um corpo escultural, bem delineado e que representa, ao menos nesse cenário, a figura da mulher brasileira, de seios fartos, quadris largos e bem esculpidos. Na peça intitulada Aniversário, ela serve uma “rodada” de cerveja na mesa de um aniversariante e os homens na mesa pedem para ela dar uma “rodada” ou uma “voltinha”. Aproveitando-se do fato de que ela está vestida com roupas curtas. Aqui, ela não bebe a cerveja, mas antes é entregue aos consumidores como a própria cerveja.
Chama a atenção nessas propagandas também a ausência de mulheres comuns, ou seja, a mulher dona de casa, a que cuida dos filhos (a mãe), a que trabalha o dia inteiro, a que estuda, entre outras. São apresentadas nas propagandas sempre mulheres idealizadas, que possivelmente vivem nos pensamentos libidinosos de homens, e também de mulheres que cobiçam um corpo malhado. Como afimam os autores do texto:
A mulher é retratada como um “objeto” de desejo do homem, porque pode proporcionar prazer por meio de sua beleza física, sua sensualidade. É possível perceber que não há, em nenhum momento e em nenhuma propaganda, a mulher inteligente, profissional, a mãe, a esposa. É um discurso “machista” em que o homem concebe a mulher como fonte de prazer de seus desejos, desvalorizando ou, até mesmo, desconsiderando a capacidade intelectual e profissional feminina, além do descaso com qualquer sentimento da mulher.
Ao se tratar das propagandas de cervejas, já que “a eficácia da propaganda está na identificação do maior número de consumidores com a mensagem proposta”, a apresentação da “mulher bonita e sensual” anexada à cerveja, poderia ser a identificação proposta ao consumidor. Comprar determinada marca potencializaria ao consumidor a conquista daquela mulher. A mulher que “todas” as mulheres gostariam de ser e que “todos” os homens gostariam de “ter”. As consumidoras, por sua vez, aceitam os valores propostos por quererem fazer jus aos elogios que lhe são dedicados, por acharem vantajosas as propostas dos anúncios e por não perceberem o jogo de manipulação.
É antiga a desvalorização dos papéis desempenhados e a da própria mulher, que é vista como um ser inferior e discriminada em suas habilidades profissionais. Essa situação só começou a ser alterada no século XXI, pois, a mulher deixou de ser concebida somente como procriadora. Pelo contrário, entende-se, atualmente que a mulher tem vontade, empreendimento e ação. As desigualdades entre os gêneros ainda se manifestam nos discursos sociais e os veículos da mídia têm importante papel na sua divulgação. Foram vários os momentos árduos para conquistar uma posição mais justa na sociedade, mas ainda há muito por ser feito e conquistado.
Atualmente a legislação brasileira restringe o horário de apresentação de propagandas de bebidas alcóolicas na televisão. E, apesar de saber que as empresas têm tratados as mulheres cada vez mais como consumidoras e não como produtos, ainda esbarrarmos com propagandas – e rótulos – de cerveja que objetificam o corpo da mulher.
Muitas marcas já perceberam que a diversidade – não só de gênero – também vende. E que pode ser mais prejudicial insistir nessa publicidade retrógrada para agradar uma fatia do público – e ser cancelado – do que se adequar aos novos paradigmas.
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