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Cerveja e Colonialismo - ou como a falta de uma consultoria histórica pode te deixar em maus lençóis

Salve nobres,

Hoje vamos falar sobre um aspecto inusitado do marketing de cerveja. E também de como a falta de uma consultoria histórica, pode colocar a sua cervejaria (ou bar) em uma situação de crise. Falarei da relação entre cerveja e colonialismo, a partir do caso de uma ação de marketing desastrosa da cervejaria portuguesa Quinas.


O que é uma colônia?

Para começar essa conversa, antes de mais nada temos que entender o que é uma colônia. Uma colônia é um território submetido política e economicamente a uma metrópole. O que significa dizer que ele não tem autonomia para fazer suas próprias leis, definir sua forma de governo ou sua política econômica. Tudo isso é decidido pela metrópole. Que a explora economicamente seja extraindo dela matéria-prima, metais preciosos, produtos agrícolas e até mesmo mão-de-obra escravizada.


Ao mesmo tempo a colônia está obrigada a adquirir da metrópole os produtos industrializados que é proibida de produzir. Justamente para não criar concorrência com os produtos da metrópole. Os historiadores dão a essa relação econômica entre metrópole e colônia o nome de “exclusivo colonial”.


Dessa forma, a função de uma colônia é complementar a economia da metrópole. É com esse objetivo que as grandes potências europeias como Portugal, Espanha e Grã-Bretanha atravessaram o Oceano Atlântico para conquistar colônias e formaram impérios durante as Idades Moderna e Contemporânea. O Império Britânico chegou a ser conhecido, ao longo do século XIX e começo do século XX, como o “Império onde o sol nunca se punha”. Porque, devido ao seu tamanho, era sempre dia em alguma parte do Império.

Como você pode imaginar, depois de um determinado tempo de domínio essa situação de ausência de autonomia política e econômica passava a desagradar as populações nativas das colônias, principalmente as suas elites. Que passavam a lutar pela sua independência. Por esse motivo a conquista e, principalmente, a manutenção de colônias ocorreram na História, na quase totalidade dos casos, por meio da violência.


Os países da América Ibérica conseguiram a sua independência lá nas primeiras décadas do século XIX, mas o processo de descolonização foi muito mais recente em outras partes do mundo. Principalmente para as nações africanas, que foram, em grande parte, colonizadas na segunda metade do século XIX. No episódio que ficou conhecido como a Partilha da África pelas potências europeias (Conferência de Berlim, 1884-1885).

É um processo que só vem terminar nas últimas décadas do século XX. O que equivale a dizer, em termos históricos, que aconteceu “outro dia”. E, por isso, as marcas do domínio colonial europeu ainda estão muito vivas nas nações africanas. Até mesmo porque algumas enfrentaram guerras de descolonização longuíssimas que geraram milhares de mortes e desestruturam a sua economia. Em suma, algumas nações africanas ainda estão se reconstruindo da herança do período colonial.


Então, podemos caracterizar a colonização como esse processo de conquista e domínio, muitas vezes violento, de uma nação sobre outra, com a finalidade de explorar os seus recursos econômicos. Mas Colonização e Colonialismo são sinônimos?


O que é Colonialismo?

O Colonialismo é, antes de tudo, a defesa e a justificação desse sistema de colonização (ou do sistema colonial), por meio de uma forma de pensar que enxerga o outro como um sujeito inferior. Como um sujeito a ser conquistado. As mais variadas justificativas foram e são usadas para legitimar esse pensamento: a ideia de que esses povos seriam incapazes de se autogovernar, e que por isso dependeriam de uma intervenção estrangeira para conseguirem “viver em paz” ou “viver em uma democracia”; e até mesmo explicações de caráter religioso que interpretam a colonização como uma missão humanitária e divina. Óbvio que essas justificativas apenas mascaram as verdadeiras intenções dos colonizadores. Que são aquelas que falei na primeira parte deste texto: a exploração econômica da colônia.


Um aspecto importante é que essa divisão entre nações conquistadoras e territórios a serem conquistados tem um forte traço eurocêntrico. O que equivale a dizer que, no discurso colonialista, os europeus aparecem como aqueles que tem esse direito de conquistar e submeter outros povos; enquanto os não-europeus seriam aqueles sujeitos a serem conquistados. O que não impede que as classes dirigentes de alguns países não-europeus também reproduzam esse pensamento. A história é um negócio complexo mesmo...


Como explica a professora Maria Paula Meneses, coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, essa forma de pensar pode ser tão violenta quanto o próprio domínio colonial, negando a dignidade humana para muitos povos do mundo. Convertendo o outro a um ser que precisa ser “civilizado” por meio da educação e do trabalho aos moldes da cultura do conquistador. Os colonizadores estariam, então, em uma missão civilizatória. Para a professora Maria Paula, a missão colonial conquistava não apenas bens e terras, mas também culturas e mentes dos povos colonizados: “Como resultado, as mentes dos colonizados vão ser dominadas de tal modo que internalizam a ideologia da superioridade eurocêntrica, passando a desprezar as suas culturas históricas, que assumem ser agora sinônimo de atraso” (MENESES, 2018, p. 116). Pareceu familiar para você?


O que é importante aqui é entender que o colonialismo, como forma de pensar o mundo, sobrevive à experiência colonial de dominação política e exploração econômica. Ou seja, por mais que não existam mais colônia (e ainda existem muitas), ainda existe o colonialismo. Essa forma de pensar existe até mesmo dentro de nações e territórios que foram colônias, como no próprio Brasil. Mas isso também é assunto para outra hora.


O colonialismo no mercado de cerveja?

Acontece que, por vezes, essa mentalidade colonialista também dá as caras no mercado cervejeiro. E não estou falando apenas da ideia subjetiva de que as cervejas feitas na Europa (onde estão três das quatro grandes escolas cervejeiras da atualidade) seriam "melhores" do que as feitas em países não-europeus; ou de que o mercado de cerveja mundial está dominado por estilos de cerveja que tem sua origem na Europa ou nos Estados Unidos (em suma, no “Norte Global” ou no Ocidente, como nos ensina Stuart Hall). Esses são, sem dúvida, pontos importantes que devem ser discutidos e que estão relacionados a um “colonialismo do gosto” (por assim dizer).


Estou me referindo, por exemplo, a uma campanha publicitária da cervejaria portuguesa Quinas, desenvolvida em janeiro de 2019 pela Agência Consultório e batizada de “Os portugueses”. Segundo a agência, a proposta da campanha era a de “pretende desvendar a alma lusa e o seu caráter invulgar” e criar ligações com os consumidores portugueses. E utilizava imagens que fariam menção a características do povo português.

Uma imagem em particular dessa campanha gerou uma certa polêmica. A imagem que faz referência ao espírito “conquistador” dos portugueses. E que mostra o mapa do continente africano desenhado na espuma de um copo de cerveja. Essa peça da campanha em particular seria direcionada para o mercado Sul-africano, onde a Quinas pretendia entrar naquele momento.


Uma imagem em particular dessa campanha gerou uma certa polêmica. A imagem que faz referência ao espírito “conquistador” dos portugueses. E que mostra o mapa do continente africano desenhado na espuma de um copo de cerveja. Com as frases: “Os portugueses são conquistadores. Gostam de deixar sua marca por onde passam”. Essa peça da campanha em particular seria direcionada para o mercado Sul-africano, onde a Quinas pretendia entrar naquele momento. E a imagem, faz uma nítida referência ao passado colonizador do Estado português e à colonização do continente africano. O subtexto inevitável (que o publicitário deve ter achado genial) é o de que a cerveja Quinas, representando Portugal, (uma vez que as “quinas” são também símbolos presentes na bandeira portuguesa) iria re-“conquistar” a África.


Acontece que, segundo matéria de autoria de Vera Novais, no site português O Observador de 04 de fevereiro de 2019, essa propaganda gerou muitos protestos, que partiram não de países africanos, mas de outra ex-colônia portuguesa: o Brasil. Apesar do Brasil ter declarado a sua independência de Portugal há exatamente 200 anos, o processo de descolonização é muito mais longo do que um grito às margens do Ipiranga. E nós também ainda lidamos com as heranças da colonização. As críticas chamavam a atenção justamente para o fato de que a propaganda reproduz o pensamento colonialista. E para o absurdo que é, ainda hoje em dia, uma propaganda exaltar o caráter “conquistador” dos portugueses. A marca se manifestou, em comunicado oficial, da seguinte maneira a respeito das críticas à sua propaganda:


“Em momento algum, a Quinas, quem desenvolveu a criatividade e quem a aprovou, quis ofender ou despertar sentimentos como os que temos visto nos comentários que têm sido postados na página de Facebook da marca. Em momento algum, se quis fazer analogias com o passado histórico ou ligações ao colonialismo. Procurar e forçar essas ligações parece-nos demasiado forçado e comentários como os que temos recebido desproporcionados pelos conteúdos e agressividade dos mesmos.”



Porém, aos olhos de qualquer um que estude um pouco o tema da colonização e do colonialismo, as analogias da peça publicitária ao passado histórico colonialista português estão não apenas sugeridas (ou “forçadas”, como afirmam os responsáveis pela marca) mas são textuais. Do contrário, a imagem escolhida pelos publicitários teria sido outra. Poderiam fazer referência, por exemplo, a uma “conquista romântica” ou a uma vitória esportiva. Optaram, em vez disso, por desenhar o mapa da África, criando uma relação direta entre a conquista portuguesa e o continente africano.


O fato é que o passado colonizador (ou conquistador, se vocês preferirem) não deveria ser algo de que se orgulhar porque a experiência colonial é intrínsecamente uma experiência de violência, como dito na primeira parte desse texto. Com relação à experiência colonial portuguesa na África, a marca que os portugueses deixaram por onde passaram, como nós sabemos muito bem, foi a da escravização e deportação de milhares de africanos. É obvio que a Quinas não está afirmando que vai escravizar ninguém. Mas, como eu também disse antes, em alguns países da África essa experiencia colonial continua influenciando no seu presente. E exaltá-la é, no mínimo, uma falta de respeito com esses povos que hoje lutam para superar esse período de dominação.

RUGENDAS, Johan Moritz. Navio negreiro, 1830.


A marca, em uma das respostas aos críticos, quis dar uma de “moderninha” e se manifestou da seguinte forma: “Falamos do presente e do futuro e não do passado”. Porém, ensinam os historiadores que o passado influencia o presente e o futuro. E o seu desconhecimento ou a sua “ignorância” pode levar a repetições no futuro de acontecimentos não muito “agradáveis”. E, muitas vezes, esse passado é ainda mais presente do que gostaríamos de admitir. O que parece ser o caso aqui.


Por fim, apesar de não admitir, a cervejaria acabou por reconhecer o erro. Se você entrar no site da cervejaria hoje, todas as outras peças dessa campanha publicitária continuam lá, menos a peça polêmica. Recorrer à consultoria de um historiador ou de um profissional das ciências humanas na hora de construir a imagem da sua marca, pode muitas vezes parecer um luxo dispensável. Mas também pode poupar o seu negócio de muita dor de cabeça desnecessária. Se a Quinas tivesse consultado um historiador (ou mesmo um antropólogo ou um sociólogo), certamente esse profissional não teria aprovado aquela imagem em particular. A consultoria histórica pode funcionar, por vezes, como um Departamento de "VDM" ("vai dar merda"). Setor fundamental porém ainda muito negligenciado pelas empresas.


Se você quiser também pode assistir esse conteúdo em vídeo, que está lá no nosso canal do Youtube.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CESARINO, Letícia. Colonialidade interna, cultura e mestiçagem: repensando o conceito de colonialismo interno na antropologia contemporânea. Ilha. vol. 19, nº 2, p. 73-105.

CUNHA, Carlos M.F. da. A questão da “especificidade” do pós-colonialismo português. Anais do VI Congresso Nacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Universidade do Minho. 2009/2010.

HALL, Stuart. O Ocidente e o resto: discurso e poder. Projeto História. São Paulo. nº 56, mai-ago 2016, p. 314-361.

MENESES, Maria Paula. Colonialismo como violência: a “missão civilizadora” de Portugal em Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais. Número Especial, 2018, p. 115-139.

NOVAIS, Vera. Quinas. Campanha da cerveja portuguesa acusada de racismo no Brasil. O Observador. 04 de fevereiro de 2019. Disponível em: Quinas. Campanha da cerveja portuguesa acusada de racismo no Brasil – Observador

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1961. 6ª edição.



















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