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Cerveja e Sexo na Mesopotâmia: uma "relação antiga"

Pesquisa: Daniel Oberlaender

Texto: Daniel Oberlaender e Sergio Barra


Salve nobres!

Quando buscamos os primeiros registros e evidências da produção de cervejas, somos levados a aproximadamente 5.000 anos atrás na região da Mesopotâmia. Região próxima ao Iraque na geografia atual, localizada às margens dos rios Tigre e Eufrates, berço de civilizações como a sumérica (entre 4.500 e 1.900 a.C.) e a babilônica (entre 1894 e 538 a.C.).

As pesquisas cervejeiras relacionadas a essas sociedades nos levam frequentemente a referências como o Hino dedicado à deidade Ninkasi. Reverenciada como Deusa suméria da cerveja e da produção de cerveja. Inclusive com tentativas atuais de produzir cervejas seguindo os procedimentos descritos no hino. Ou o Código de Hammurabi (c. 1772 a.C.), considerado um dos mais antigos conjuntos de leis da Humanidade. Ao qual são atribuídas, muitas vezes, informações falsas sobre o lugar da cerveja na sociedade babilônica, como veremos mais adiante neste texto. Porém, frequentemente as pesquisas das referências mais antigas sobre cerveja na Mesopotâmia, não vão muito além disso.


O fato de terem uma deusa para representar a bebida nos dá uma noção de como a produção e consumo de cerveja era algo relevante para essas sociedades. Mais um exemplo disso é o fato de que já havia “palavras” específicas para designar, pelo menos, 20 tipos diferentes de cerveja na Mesopotâmia. Segundo Chiara Calegari, a cerveja era comumente chamada pelos sumérios de se-bar-bi-sang, que significa “a água que faz ver claro” (CALEGARI, 2012, p.11). A cerveja de cevada era chamada de sikaru (em tradução literal, “pão líquido”), enquanto a de espelta (trigo vermelho) era chamada kurunnu. Outros tipos de cerveja eram obtidos misturando as duas em proporções diversas. Como, por exemplo, a niud, bebida adocicada com açúcar de tâmaras.


Já sabemos que o consumo de cerveja tinha uma conotação divina. E que, em muitos rituais, se buscava a embriaguez como forma de atingir um estado de consciência alterada que permitisse ao homem entrar em contato com as realidades transcendentes. Mas a cerveja tinha também uma importante função social. Com várias pessoas bebendo o líquido do mesmo recipiente. Como se pode ver em um selo/carimbo cilíndrico com uma imagem muito utilizada nos artigos sobre história da cerveja (imagem 1), que mostra uma relação popular com a bebida: pessoas bebendo cerveja são retratadas na linha superior da impressão.

Imagem 1 - Green sparry calcite seal. Museu Britânico. Sem data.

Partilhar uma bebida com alguém se torna, dessa forma, um símbolo universal de hospitalidade e amizade. Sinaliza que se pode confiar na pessoa que oferece a bebida, pois demonstra que não está envenenada ou inadequada para o consumo (STANDAGE, 2005, p. 17). Na Suméria, a expressão “derramamento de cerveja” referia-se a uma festa ou banquete de celebração.


Então, seria estranho não haver registro dessa bebida, tão presente na sociedade, em cenas da vida mundana, menos divinas, menos etéreas e, podemos dizer, mais carnais. É o que mostra a pesquisa realizada por Daniel Taveira Oberlaender, mestre-cervejeiro da cervejaria Habeas Copos, de Niterói (RJ). Que, gentilmente, nos cedeu imagens e textos encontradas por ele sobre o tema para publicarmos aqui.


Várias placas de argila cozida ou terracota, produzidas em massa no sul da Mesopotâmia a partir do segundo milênio a.C., mostram, em relevo, uma cena de sexo entre um homem e uma mulher (imagens 2 a 7). Onde o homem em pé penetra por trás a mulher que se inclina para beber cerveja de um jarro com um canudo, como era costume na época. Era consumida dessa forma devido à grande quantidade de elementos em suspensão no líquido.

Imagem 2 - Plaque depicting a copulating couple drinking beer (2º milênio a.C.). Museu de Israel
Imagem 3 - Mesopotamian Terracotta Relief Plaque with Erotic Scene (2º ao 1º milênio a.C.). Artemis Gallery (EUA)



















Não há dúvidas de que são cenas de sexo pois em algumas dessas imagens o pênis do homem é bastante visível (imagem 3). A presença do jarro de cerveja e o penteado da mulher, geralmente no comprimento dos ombros e enrolado nos ombros, foram tomados como evidência para a identificação da participante como prostituta em um cenário de taberna ou bordel.

Imagem 4 - Babylonian Erotic Scene (2100-1500 a.C.). Barakat Gallery (EUA)
Imagem 5 - Modelgeformtes Terrakottarelief mit erotischer szene (1850-1595 a.C.). Museu de Berlim

As imagens são representativas da relação entre o consumo de álcool e a atividade sexual. Ressaltando o seu aspecto socializante. E, até mesmo, guardando uma semelhança com o nosso tempo. Mas os estudiosos não afastam também a possibilidade dessas imagens não serem apenas uma representação de fatos cotidianos, mas terem também significados mágicos ou religiosos.

Imagem 6 - Terracotta plaque with na erotic scene. Museu Britânico
Imagem 7 - Figurine (2000 – 1500 a.C.) - Départment des Antiquités Orientales, Museu do Louvre.

Uma imagem que difere um pouco das anteriores é a produzida por um selo/carimbo cilíndrico que, quando rolado sobre argila, gera imagens em relevo (imagem 8). A imagem, segundo interpretação de um pesquisador, não seria pornografia, como as outras placas babilônicas. Mas sim um tipo de charge. Na parte esquerda da imagem é possível observar os mesmos motivos das placas de argila recorrentes (cena de sexo com homem que penetra por trás uma mulher que bebe cerveja), mas do lado direito aparece um outro homem correndo, agitando os braços. Segundo pesquisadores, estamos possivelmente diante de uma cena de adultério/traição, onde o homem traído corre em direção à sua mulher, que está tendo relação sexual com outro! Segundo o pesquisador, a imagem não é para ser lasciva e sim engraçada, como uma charge/tirinha atual. Seria provavelmente a primeira charge/tirinha de toda a história e claro, envolve cerveja (e sexo)!

Imagem 8 - sceau cylindre (539-30 a.C.) - Départment des Antiquités Orientales, Museu do Louvre

Na literatura mesopotâmica também é possível encontrar outros exemplos de temática sexual e de prostituição, que incluem fortes conexões como o consumo de bebidas alcóolicas.



Colocaram comida na sua frente,

Colocaram cerveja na sua frente;

Enkidu não sabia comer pão,

E não lhe haviam ensinado a beber cerveja.

A jovem mulher disse a Enkidu:

“Coma os alimentos, Enkidu, pois é como se vive.

Beba a cerveja, pois é o costume da terra.”

Enkidu comeu até ficar saciado,

Bebeu a cerveja – sete copas! – e ficou expansivo

E cantou com alegria

Estava exultante e seu rosto brilhava.


No seu leito de morte (prematura), porém, Enkidu se arrepende de ter sido “civilizado” e maldiz a cortesã de Uruk que o “civilizou”, com pão e cerveja:


Você nunca vai morar em um harém,

O resíduo de cerveja vai manchar seu lindo peito,

Com o seu vômito, o bêbado respingará seu vestido...

A poesia erótica frequentemente faz referência explícita aos órgãos genitais masculinos e femininos, bem como aos pelos pubianos como belos ou atraentes. A vulva e o pênis são referidos diretamente sem eufemismo tanto na língua acadiana quanto em sumério. Nenhum dos termos tem qualquer conotação negativa e ambos são usados ​​explícita e extensivamente na literatura. Na poesia suméria, a vulva e os pelos púbicos também são frequentemente comparados a alimentos doces ou bons. Como na canção de amor real de Shu-Suen do período Ur III (aprox. 2100 a.C.):


Minha [. . .], Il-Ummiya, taberneira, a cerveja dela é doce!

E a vulva dela é doce como sua cerveja e sua cerveja é doce!

E a vulva dela é doce como sua boca e sua cerveja é doce!

Sua cerveja leve e sua cerveja (normal) são doces!


Nesse trecho aparece também a figura da taberneira /estalajadeira / cervejeira (sābû ou sābītu). A proprietária da taberna mesopotâmica, onde a cerveja era produzida e distribuída e onde também se acomodavam inquilinos, provavelmente viajantes. O regulamento das tabernas é objeto do Código de Hammurabi. Os parágrafos 108 ao 111 tratam do regulamento das tabernas (taberneiros prepostos, polícia, penas e tarifas). O primeiro dos quais afirma o seguinte: “Se uma taberneira não aceitar cevada como preço da cerveja, mas aceitar prata, e o preço da bebida for menor do que o dos grãos, ela deverá ser condenada e lançada na água”. Ou seja, estabelece a pena de morte por afogamento para aquela taberneira que cobrasse pela cerveja mais do que ela valia. Mas, ao contrário do que se afirma comumente, essa lei não diz respeito à qualidade da cerveja e sim ao seu preço. E também não manda afogar a cervejeira na própria cerveja.


Com diz o ditado, o que acontece entre o Tigre e o Eufrates fica entre o Tigre e o Eufrates…


Referências Bibliográficas:

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BAHRANI, Zainab. Women of Babylon: gender and representation in Mesopotamia. Psychology Press, 2001. BLACK, J.A.; CUNNINGHAM, G.; EBELING, J.; FLÜCKIGER-HAWKER, E.; ROBSON, E.; TAYLOR, J.; BOTTÉRO, Jean. Mesopotamia: Writing, reasoning, and the gods. University of Chicago Press, 1995.

BOUZON, Emanuel (org.). O Código de Hammurabi. Petrópolis: Vozes, 1987.

COOPER, Jerrold S. The Job of Sex: The social and economic role of prostitutes in ancient Mesopotamia. in: The Role of Women in Work and Society in the Ancient Near East, p. 209-27, 2016.

DAMEROW, Peter. Sumerian beer: the origins of brewing technology in ancient Mesopotamia. Cuneiform Digital Library Journal, v. 2, n. 1, 2012. Disponível em: https://cdli.ucla.edu/file/publications/cdlj2012_002.pdf

HAALAND, R. (). Porridge and Pot, Bread and Oven: Food Ways and Symbolism in Africa and the Near East from the Neolithic to the Present. Cambridge Archaeological Journal, 17(2), 165-182. 2007. Disponível em: https://www.academia.edu/19189607/Porridge_and_Pot_Bread_and_Oven_Food_Ways_and_Symbolism_in_Africa_and_the_Near_East_from_the_Neolithic_to_the_Present

JACOBSEN, Thorkild. The harps that once…: Sumerian poetry in translation. Yale University Press, 1987.

MIRELMAN, Sam; SALLABERGER, Walther. The Performance of a Sumerian Wedding Song (CT 58, 12) 13. 2010. [PDF] soas.ac.uk

STANDAGE, Tom. A história do mundo em 6 copos. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

ZÓLYONI, G. The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature. Oxford 1998–2006. Disponível em: http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/






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