Salve nobres!
Como ficou dito no fim da primeira parte, com a expulsão dos holandeses do Nordeste, em 1754, também termina a primeira experiência de produção de cerveja na América Portuguesa. A importação de vinho português e o alvará de proibição de manufaturas decretado por D. Maria I (em 1785) também serviriam como obstáculos tanto para a produção quanto para o consumo de cerveja por essas bandas. Por isso, a cerveja só teria voltado a desembarcar em portos brasileiros depois da transferência da Família Real Portuguesa para o Rio de Janeiro.
Não é o caso de entrar nos detalhes desse acontecimento político, já amplamente conhecido. Vale ressaltar apenas duas medidas tomadas por D. João logo que chegou ao Rio de Janeiro e que colaboraram para a volta da cerveja à América Portuguesa: o Decreto de Abertura dos Portos às nações amigas de Portugal, de 28 de janeiro de 1808 e a revogação do Alvará de Proibição das Manufaturas, de 1 de abril do mesmo ano. Com essas medidas, o mercado do Rio de Janeiro foi invadido por produtos da única nação europeia que, naquele momento, poderia comerciar com a monarquia portuguesa: a Grã-Bretanha. Que era já, desde o século XVII, o seu principal aliado político e parceiro comercial.
Uma afirmação muito reproduzida seria a de que o próprio Príncipe Regente português era um “apreciador inveterado de cerveja”. A afirmação pode ser encontrada, por exemplo, no blog Cervisiafilia, a história das antigas cervejarias, de Carlos Alberto Tavares Coutinho: “Consta que o rei, apreciador inveterado de cerveja, não podia ficar sem consumir a bebida”; ou no livro de Alexandre Hill Maestrini, que praticamente parafraseia Coutinho: “Consta que o Rei Dom João era um apreciador inveterado de cerveja e não podia ficar sem consumir sua bebida” (MAESTRINI, 2015, p. 10); e Maurício Beltramelli reconta o conto aumentando um ponto: “Consta que o rei português D. João VI era um apreciador da bebida e teria trazido vários tonéis de brejas em suas naus” (BELTRAMELLI, 2014, p. 187). Porém, o primeiro autor não fornece a fonte de onde tira a informação e os outros dois parecem se basear no primeiro. Mas será que a cerveja volta ao Brasil mesmo devido ao gosto pessoal do monarca? Para que não restasse qualquer sombra de dúvidas a esse respeito seria necessário consultar as listas de mantimentos da despensa dos palácios reais (ou Ucharia Real, nos termos da época) em Portugal ou no Brasil. Porém, infelizmente, não consegui encontrar esses documentos, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Por outro lado, outros fatos nos levam a acreditar que talvez D. João fosse um maior apreciador de vinho do que de cerveja.
Como explica Tom Standage, desde a dominação romana da Europa, de parte do Oriente Médio e do Norte da África, essa bebida ficou associada à nobreza europeia. Em qualquer lugar por onde o governo de Roma se estendesse, as pessoas adotavam o hábito de beber vinho, assim como outros costumes romanos. Principalmente as elites locais, geralmente aliadas dos dominadores romanos, que adotavam aqueles hábitos como um símbolo de distinção social. Na Península Itálica, onde o consumo do vinho era generalizado pela sociedade, os mais ricos bebiam os melhores, enquanto os cidadãos mais pobres bebiam as safras de qualidade inferior. No Norte da Europa, área produtora de grãos, as elites locais passaram a beber o vinho, enquanto a população em geral continuou bebendo a cerveja e outras bebidas locais (STANDAGE, 2005, p. 46-58). A representação do vinho como a bebida predileta da nobreza europeia se consolida ao longo da Idade Média e Moderna, unida ao simbolismo que essa bebida adquire na liturgia cristã, como o “sangue de Cristo”.
Com relação à Corte portuguesa em particular, a historiadora Leila Mezan Algranti nos fornece uma pista sobre o lugar que o vinho ocupava na mesa do Rei. A autora analisa um decreto real de 11 de maio de 1765, que regulamentava o funcionamento da Ucharia e da Cozinha da Casa Real. O decreto estabelecia uma série de normas tais como: quem seria o responsável pela administração desses dois setores, o número de empregados que ali trabalhariam, suas respectivas funções e ordenados, quais os tipos de alimentos que deveriam ser comprados e sua quantidade, a forma de cozinhá-los, o número e o material das baixelas que deveriam ir à mesa e, sobretudo, o tipo e a quantidade da ração que deveria ser servida para cada categoria de pessoas. Como explica a autora:
o serviço deveria ser feito seguindo-se rigorosamente a distribuição hierárquica dos alimentos. Ou seja, quanto mais alto o posto ocupado e a importância das tarefas prestadas, maior a quantidade de comida oferecida, a qual se expressava em termos de número de iguarias ou de pratos. (ALGRANTI, 2010, p. 94)
As sociedades de Corte se caracterizavam por serem sociedades extremamente hierarquizadas. Essa hierarquia não se manifestava apenas na distinção entre nobres e plebeus. Mas a própria nobreza era hierarquizada por meio dos seus títulos. Um duque tinha uma posição social mais alta do que um marquês; este último ocupava uma posição social mais alta do que um conde; e este, por sua vez, uma posição social mais alta do que um barão. E uma posição social mais alta significava um acesso a determinados privilégios o qual os indivíduos de posições sociais inferiores não compartilhavam. O lugar social na Corte de cada um desses indivíduos era estritamente regulamentado por uma série de normas de procedência e protocolos de todo gênero e, sobretudo, por um código de etiqueta que cada indivíduo deveria interiorizar. Obedecer a essas normas era garantir o seu lugar social na Corte.
O comportamento à mesa ocupava um lugar especial entre essas normas de etiqueta. Não apenas a forma de comportar-se à mesa era objeto de regulamento, mas também a distribuição dos alimentos obedecia a uma hierarquização dos indivíduos. A maior ou menor quantidade de iguarias servidas a cada “mesa”, distinguia os indivíduos. Conforme explica Leila Algranti: “Uma mesa era composta por um conjunto de iguarias e uma quantidade de pratos previstos pelos regulamentos para a posição social que aquele grupo de pessoas ocupava na Corte” (ALGRANTI, 2010, p. 88). Partilhar de uma mesma “mesa” não significava, necessariamente, estar colocado fisicamente na mesma mesa. Mas sim partilhar de uma mesma posição social e, portanto, de um mesmo tipo de refeição. Dessa forma, a organização das refeições, com a definição do que cada um podia ou não podia comer, servia como confirmação da hierarquia social que moldava a Sociedade de Corte.
Dessa forma, na Corte portuguesa do avô de D. João, o Decreto de 11 de maio de 1765 e a Tabela do que havia na ucharia real, estudados por Algranti, determinavam que o vinho fosse oferecido apenas para os segmentos sociais mais privilegiados. Confirmando que essa era a bebida por excelência das classes mais altas. Com tamanho grau de normatização seria esperado que a cerveja aparecesse nesses documentos caso fosse consumida regularmente por membros da Família Real, ou por funcionários da Casa Real. O que não acontece. A cerveja não é citada em momento nenhum. O que não impede, por outro lado, que D. João VI tenha inserido o consumo de cerveja no seu regime alimentar, ainda em Portugal ou já no Brasil. Porém, infelizmente, até o momento, não foram encontrados documentos que indiquem isso.
Dessa forma, os autores que afirmam que a cerveja voltou a chegar ao Brasil, no começo do século XIX, “trazida pela Família Real”, estão parcialmente certos. Sem dúvida, a principal medida econômica tomada por D. João durante a sua estadia no Rio de Janeiro, o decreto de abertura dos portos assinado por ele em Janeiro de 1808, foi condição sine qua non para a entrada de cerveja no comércio da América Portuguesa. Porém, não necessariamente porque D. João (ou algum outro membro da Família Real) fosse um amante da bebida. Mas porque as condições políticas e econômicas criadas a partir desse fato, permitiram o início da importação legal da bebida, que encontrou principalmente no Rio de Janeiro um público sedento de novidades e outro sedento de tradições.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALGRANTI, Leila Mezan. Notas sobre a mesa da Casa Real Portuguesa no Reinado de D. José I. in: SÁ, Isabel dos Guimarães; FERNÁNDEZ, Máximo García (dir.). Portas adentro: comer, vestir, habitar (ss. XVI-XIX). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010, p. 87-113.
BELTRAMELLI, Mauricio. Cervejas, brejas e birras: um guia para desmistificar a bebida mais popular do mundo. São Paulo: Leya, 2014.
COUTINHO, Carlos Alberto Tavares. Cervisiafilia: a história das antigas cervejarias. Disponível em: http://cervisiafilia.blogspot.com.br/
MAESTRINI, Alexandre Hill. Cervejas, alemães e Juiz de Fora. Juiz de Fora: Editar, 2015.
STANDAGE, Tom. A história do mundo em 6 copos. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
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