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História da cerveja no Brasil - parte 3 - na rota das IPAs

Atualizado: 18 de out. de 2022

Salve nobres,

Como ficou dito na parte precedente, não conseguimos saber com certeza se D. João era fã de cerveja, como alguns autores afirmam. Mas temos certeza de que a nossa amada bebida era vendida no Rio de Janeiro do início do século XIX. Na seção de anúncios da Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro periódico a ser publicado no Rio de Janeiro, é possível perceber que o comércio da cidade oferecia os produtos necessários para o abastecimento da clientela europeia, segundo levantamento feito por Maria Beatriz Nizza da Silva (SILVA, 1993, p. 223): pães de diversos tipos (português, italiano, francês, inglês, espanhol), presuntos de Portugal ou de Yorkshire, salame da Itália, doces de frutos europeus (ginja, damasco, pêssego, figo), vários tipos de chá, frutas em aguardente, licores e vinhos variados e não apenas portuguesas, mas de muitas procedências (da Catalunha, de Bordeaux, de Provence, de Champanhe, do Reno, de Chipre). Sobre o comércio de cervejas, no entanto, o periódico nos dá menos pistas. Mas, pelo que parece, eram vendidas em estabelecimentos como a loja de Luiz Zovetti e Cª, localizada na rua do Ouvidor nº 9, onde se vendia por preços “muito cômodos”, segundo anúncio feito no jornal:


licores de Martinica de várias qualidades, (...) mostarda, conservas inglesas de muitas qualidades, cidra, molhos para peixe, vinhos de muitas qualidades estrangeiros, vinagre engarrafado de França, azeite engarrafado de Florença, frutas em aguardente, chá de diferentes qualidades, genebra, cerveja, doces para chá, também se preparam bandejas de doces, aguas de cheiro de várias qualidades, gotas amargas, chocolate de Espanha. (Gazeta do Rio de Janeiro nº 101, de 18 de dezembro de 1813)


Ou na confeitaria de Gafurio e Companhia, na rua do Ouvidor, canto do Beco das Cancelas nº 16, onde se vendiam “vinhos superiores engarrafados de todas as qualidades, cerveja, licores estrangeiros, conservas e frutas secas”. Os proprietários aproveitavam para informar que no mesmo local, os consumidores podiam encontrar uma sala decente e cômoda para tomar bebidas” (Gazeta do Rio de Janeiro, nº 67, de 21 de agosto de 1816).


Félix Émile Taunay - Rua Direita (1823)


Segundo Filipe Guimarães da Silva, na sua dissertação de mestrado intitulada A nacionalização que se deseja: notas para uma breve história da indústria cervejeira nacional: do Estado Novo às nacionalizações revolucionárias, as primeiras unidades de produção de cerveja em Portugal, no início do século XIX, caracterizavam-se por “sua reduzida dimensão, descapitalização, produção local com equipamentos rudimentares e obsoletos, cujas propriedades pertenciam, de forma geral, a cidadãos estrangeiros”, sendo a primeira fábrica de que se tem registro, pertencente a Jacques Maillard, e datada de 1833 (SILVA, 2012, p. 6). Muito tempo depois da morte de D. João e na mesma década em que também aparecem os primeiros registros de fabricação de cerveja no Brasil, como veremos mais adiante. Uma vez que não há indícios de produção de cerveja no Brasil e nem em Portugal nas duas primeiras décadas do século XIX, que cerveja era essa que se consumia no Rio de Janeiro durante a estadia aqui da Corte portuguesa?


O principal aliado político e parceiro comercial da monarquia portuguesa desde a restauração do trono no século XVII, com o fim da chamada União Ibérica (1580-1640), era a Grã-Bretanha. Com a transferência da Família Real portuguesa, com o Decreto da abertura dos portos “às nações amigas” (de 28 de janeiro de 1808) e, principalmente com o Tratado de Comércio e Navegação de 1810, celebrado entre as coroas portuguesa e britânica, se transfere também para a América portuguesa a presença inglesa. Após esse tratado, mercadorias estrangeiras transportadas em navios estrangeiros ficavam sujeitas ao pagamento de uma taxa de entrada de 24%, mercadorias portuguesas ou estrangeiras transportadas em navios portugueses a uma taxa de 16% e as mercadorias britânicas transportadas em navios britânicos ou portugueses a uma taxa de 15%. Ou seja, os tratados foram amplamente favoráveis ao comércio britânico, uma vez que seus produtos pagavam menos impostos de importação do que produtos vindos da própria metrópole.

Embarque do Princípe Regente - Henry L'Eveque (1815)


Como explica Olga Pantaleão, considerando o estado de paralisação em que se encontrava o comércio inglês, devido ao bloqueio francês na Europa, decretado em 1806, a possibilidade de abertura de uma porta de saída atraiu numerosos comerciantes ingleses, que vieram estabelecer-se no Brasil (PANTALEÃO, 1965, p. 84). Em 29 de junho de 1808 reuniram-se 113 comerciantes ingleses e fundaram a Sociedade de negociantes ingleses que traficam para o Brasil, com a finalidade de defender os interesses dos seus associados, intervindo até junto a órgãos de governo. E já nesse ano de 1808 entravam no Rio 90 navios estrangeiros de comércio. Dois anos depois esse número subia a 422. Esses ingleses dirigiram-se para diferentes portos do Brasil, mas predominantemente para o Rio de Janeiro. Um autor inglês calcula que, em setembro de 1808, já existiam 100 firmas inglesas estabelecidas no Rio de Janeiro (PANTALEÃO, 1965, p. 85). Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, a lista dos negociantes no Almanaque do Rio de Janeiro para o ano de 1816 inclui 59 nomes de ingleses, sendo alguns referentes à sociedades (SILVA, 2016, p. 194).


Um comerciante europeu que desejasse então estabelecer negócios no estrangeiro não trazia capital em dinheiro e sim em mercadorias. No início, sem a menor noção das necessidades dos brasileiros, as firmas britânicas remeteram para o Brasil artigos que absolutamente não podiam ter consumo aqui, e que faziam parte de estoques destinados, originalmente, a outros países, mas que se conservaram invendáveis. São famosas as indicações de artigos como patins para gelo, espartilhos para senhoras e instrumentos de matemática. Havia, por trás da excessiva quantidade de mercadoria enviada, uma necessidade de se desfazer de estoques grandes parados e de resolver a situação crítica nos negócios. O mercado do Brasil, recém-saído do regime de exclusivo colonial (aquele onde a colônia só pode comerciar com a metrópole), era restrito e pouco elástico. O abarrotamento do mercado logo se fez sentir e tornou difícil o escoamento das mercadorias.


Desde muito cedo, juntamente com aquelas mercadorias que não encontravam saída no mercado do Rio de Janeiro, os comerciantes ingleses não esqueceram de trazer também cerveja para abastecer os súditos ingleses que vieram aqui morar, fossem diplomatas fossem comerciantes. E também a nobreza metropolitana e as classe mais abastadas da colônia, que buscavam copiar o estilo de vida europeu.


As edições da Gazeta do Rio de Janeiro dos meses de agosto e setembro de 1810, trazem mapas de exportações das produções das Ilhas dos Açores, da Madeira, dos reinos de Portugal e do Brasil para o porto de Liverpool no ano de 1809, assim como a exportação de produtos deste porto para as referidas localidades, onde se pode ver um panorama dos gêneros comerciados. Os mapas de exportação do porto de Liverpool para o Brasil no ano de 1809 apontam, entre uma infinidade de outros produtos (aço, algodão, bacalhau, cadeiras, chapéus de cabeça e de sol, fazendas da Índia, meias de algodão, de lã e de seda, entre outros) a exportação de 324 barris de cerveja entre os meses janeiro e maio (9 barris em janeiro, 49 em fevereiro, 23 em março, 202 em abril, 41 em maio). Já no final do período de permanência da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, a edição da Gazeta do Rio de Janeiro de 24 de junho de 1820, traz um mapa de importação e exportação das possessões portuguesas com o porto inglês de Bristol ocorridas nos últimos três meses do ano anterior. Onde se pode ver que para o porto do Rio de Janeiro foram exportados 15 barris e 60 garrafas de cerveja.


A partir de Julho de 1811, o jornal passa a publicar a seção Notícias Marítimas, com a relação dos navios que entravam e saiam porto do Rio de Janeiro, informando o porto origem (no caso das entradas) ou de destino (no caso das saídas) dos navios e, por vezes, a sua carga. Por essa seção, é possível acompanhar o movimento de entrada no porto de navios trazendo cerveja. Dos navios entrados no porto do Rio de Janeiro até setembro de 1822, em cuja carga declara-se expressamente que traziam cerveja, 92% eram de nacionalidade inglesa. E os três principais portos de origem eram a ilha de Guernsey, localizada no Canal da Mancha próxima à Normandia (38% do total), Londres (24% do total) e Liverpool (16% do total).


O domínio do mercado brasileiro pela cerveja inglesa se explica não apenas pelo fato da Grã-Bretanha ser a principal parceira comercial de Portugal naquele período. Mas também porque, como informa Edgar Köb, no começo do século XIX a Inglaterra possuía a indústria de cerveja mais desenvolvida da Europa, com o emprego de maquinário a vapor e outros meios de produção industrial, enquanto em outros lugares ainda predominava o modo artesanal de produção de cerveja (KÖB, 2000, p. 31) Esse mesmo autor afirma, sem citar fontes, que as cervejas inglesas dominaram o mercado brasileiro primeiro com o estilo Porter, seguida pela Pale Ale da cidade de Burton upon Trent. Assim, é bastante razoável pensar que as famosas India Pale Ale, destinadas ao mercado colonial indiano desde fins do século XVIII, também desembarcavam no porto do Rio de Janeiro.


A versão mais conhecida da história da criação do estilo India Pale Ale afirma que a sua origem está ligada à expansão colonial britânica na Índia. A Inglaterra dominou formalmente o subcontinente indiano entre 1773 e 1947. E os administradores e militares que eram mandados da Inglaterra para servir na Índia precisavam ser abastecidos de cerveja, que vinha da também Inglaterra uma vez que não se produzia cerveja na Índia. George Hogdson, proprietário e cervejeiro da Bow Brewery, de Londres, teria então criado uma cerveja Pale Ale (estilo muito consumido na Inglaterra) com uma carga extra de lúpulo para suportar a viagem, que poderia durar até 8 meses na navegação à vela (uma vez que o lúpulo tem ação conservante). Essa nova cerveja apresentava um amargor mais pronunciado e foi batizada de Pale Ale for India. Virando, algum tempo depois, India Pale Ale. Fez muito sucesso entre os ingleses na Índia e passou a ser procurada também na Inglaterra, por aqueles soldados e administradores que voltavam da sua temporada no Oriente. Principalmente, após um lote de cerveja que estava sendo levado para a Índia ser resgatado de um naufrágio e leiloado para habitantes locais. Hodgson, então, passou a produzir a India Pale Ale também para o mercado doméstico.


Porém, é importante dizer que essa conhecida versão da história vem sendo contestada. Pesquisadores como Garret Oliver, mestre-cervejeiro da Brooklyn Brewery e organizador da última edição do Guia Oxford da Cerveja, afirmam que já nos anos de 1711, tanto cervejas Porter como Pale Ale eram exportadas para a Índia com êxito. E que os ingleses já sabiam que cervejas mais alcóolicas e lupuladas resistiam melhor às longas viagens. Dessa forma, não é possível atribuir a Hogdson a criação do estilo. Mas não é o objetivo desse texto entrar nessa discussão, que deixarei para outra ocasião.


Dessa forma, a cerveja voltou a chegar ao Brasil no começo do século XIX, não “trazida pela Família Real”. Ainda que, sem dúvida, a principal medida econômica tomada por D. João durante a sua estadia no Rio de Janeiro, o Decreto de abertura dos portos assinado por ele em Janeiro de 1808, tenha sido condição sine qua non para a entrada de cerveja no comércio da América portuguesa. Mas, as cervejas chegavam trazidas por navios comerciais ingleses, e para consumo quase exclusivo dos ingleses que vieram morar na nova Corte portuguesa no Rio de Janeiro. E, pelo que parece, as Pale Ale for Índia já fazem sucesso no mercado carioca há mais tempo que se imagina.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Gazeta do Rio de Janeiro nº 101, de 18 de dezembro de 1813.

Gazeta do Rio de Janeiro, nº 67, de 21 de agosto de 1816.

KÖB, Edgar. Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 161 (409), 2000, p. 29-58.

OLIVER, Garret (edição). O Guia Oxford da Cerveja. São Paulo: Blucher, 2020.

PANTALEÃO, Olga. A presença inglesa. In: Holanda, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965. Tomo II, 1º vol.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. 1. Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D. Maria I e D. João VI. Lisboa: Editora Estampa, 1993.

SILVA, Filipe Guimarães. A nacionalização que se deseja: notas para uma breve história da indústria cervejeira nacional: do Estado Novo às nacionalizações revolucionárias. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa, 2012.

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