Salve nobres!
Quando se fala em História da cerveja no Brasil, a primeira questão que vem à cabeça da maioria das pessoas parece ser: qual foi a primeira fábrica de cerveja do Brasil? E tenho certeza que ainda hoje a maioria das pessoas responde sem hesitar que foi a Cervejaria Bohemia, de Petrópolis (RJ). A Bohemia foi fundada em 1853 como uma filial da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional de propriedade de Henri Joseph Leiden (ou Henrique Leiden, em versão aportuguesada), que funcionava no Rio de Janeiro desde 1848. Em 1858, Leiden, que era filho de pai alemã e mãe francesa, vendeu a sua filial de Petrópolis para outro imigrante alemão: Henrique Kremer. E apenas no ano de 1899, quando foi feita uma grande obra de modernização da fábrica, é que passou a se chamar Companhia Cervejaria Bohemia.
Em alguns anúncios da sua cervejaria, Leiden se denominava “o primeiro introdutor deste ramo de indústria no Brasil” (como no anúncio publicado na edição de 1857 do Almanak Laemmert, que reproduzo abaixo). O Almanak, publicado anualmente a partir de 1844, trazia uma relação das autoridades da Corte de D. Pedro II. Um “quem é quem” na organização administrativa, jurídica, política, social e religiosa do Império do Brasil. Mas também a relação dos negociantes e industriais da Corte e da Província do Rio de Janeiro.
Uma nota publicada na edição de 22 de dezembro de 1868 do Diário de Pernambuco, também reproduz essa informação do pioneirismo de Leiden na produção de cerveja no Brasil. Nela, se informa que Leiden havia recebido uma honraria do Imperador D. Pedro II pelos seus trabalhos em prol do desenvolvimento da indústria no Brasil:
“O Sr. Henri Joseph Leiden, proprietário da grande fábrica de cerveja da rua do Sebo, acaba de ser agraciado por S.M. o Imperador com o hábito da Rosa, por decreto de 5 do mês corrente, em atenção a ter sido ele o fundador da primeira fábrica de cerveja no Brasil no ano de 1848 e ao grande desenvolvimento que deu a essa indústria, tanto na corte como em Pernambuco”. (Acessível no Acervo Digital da Universidade da Flórida: Diario de Pernambuco (ufl.edu)
Leiden havia se transferido para Pernambuco no ano de 1864, e fundado em Recife uma fábrica de “cerveja, vinagre, vinho e outros líquidos”, em parceria com Henri Quanz e Augusto Kruss (Jornal do Recife, 19/05/1868). Deixando a fábrica do Rio de Janeiro sob a direção do seu sobrinho, Leon Leiden. Não se sabe ao certo a data e nem o local de falecimento de Henrique Leiden. Mas deve ter ocorrido por volta de 1870, pois o Almanak Laemmert de 1872 (referente ao ano de 1871) aponta como proprietária do estabelecimento do Rio de Janeiro a “Viúva Leiden”. Mesmo assim, a Imperial Fábrica de Cerveja Nacional de Leiden é uma das fábricas do Brasil oitocentista sobre a qual temos mais informações. Afirma Carlos Alberto Tavares Coutinho que, em 1852 (4 anos após a sua fundação no Rio de Janeiro e um ano antes da fundação da filial de Petrópolis) a fábrica contava com três empregados. Já Edgar Köb afirma que no exercício de 1855/56 trabalhavam na cervejaria 10 pessoas, produzindo 120 mil garrafas de cerveja (KÖB, 2000, p. 33/34). Coutinho complementa que desses 10 funcionários, seriam 8 homens e duas mulheres e nenhum escravo (não identifica, porém, a fonte da informação). A propaganda da cervejaria publicada no Almanak Laemmert de 1857 mostrava que o espaço da fábrica, localizada na Rua de Matacavalos nº78 (atual Rua do Riachuelo), servia também como espaço de lazer e sociabilidade: “Achando-se o seu estabelecimento em um dos sítios mais amenos desta corte, a sua visita se recomenda a todos os amadores de recreios honestos e sociais, os quais, além de ótima cerveja de vários gostos, encontrarão arranjos cômodos, caramanchões, diversos jogos e boa companhia”.
Na ausência de informações mais detalhadas sobre as outras cervejarias existentes no Brasil na mesma época, durante muito tempo acreditamos nesse auto-marketing de Leiden como pioneiro da produção cervejeiras no Brasil. Até mesmo porque, a Bohemia (hoje pertencente à AB-Inbev) ainda reproduz essa informação no seu marketing, como se pode ver nessa tampa de garrafa utilizada ainda hoje em dia.
Porém, Edgar Köb no seu artigo Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930, publicado em 2000, já se referia ao anúncio de outra cervejaria, publicado no Jornal do Commercio (RJ) em 27 de outubro de 1836. 12 anos antes, portanto, de Leiden abrir a sua fábrica no Rio de Janeiro. Na verdade, a fábrica de Cerveja Brazileira (assim mesmo, com “z”), publicou uma série de nove anúncios naquele jornal ao longo do segundo semestre de 1836. A maioria deles repete o mesmo texto:
Coincidentemente, a fábrica também estava localizada na mesma rua onde funcionaria mais tarde a própria fábrica de Leiden. Enquanto o endereço da rua Direita (a atual Rua 1º de Março) provavelmente, deveria ser o do distribuidor da cerveja. Uma vez que, em meados do século XIX, seria impossível erguer uma fábrica de cerveja em pleno centro do poder do Rio de Janeiro. Onde estavam o Paço Imperial, a Câmara dos Vereadores e as principais igrejas da cidade. E a um passo do comércio de luxo da rua do Ouvidor. O final do anúncio parece afirmar que o consumo de cerveja ainda não era muito difundido no Rio de Janeiro em 1836. Porém, isso é tudo que conseguimos saber sobre a fábrica de Cerveja Brazileira, até o momento. Ainda não foram encontradas outras informações sobre essa cervejaria. Como, por exemplo, quem era o proprietário, que estilos de cerveja ela produzia ou quanto tempo ela durou. Mas ela não aparece nas listas de cervejarias do Almanack Laemmert, publicadas a partir de 1849. De onde se pode deduzir que a fábrica de Cerveja Brazileira não deve ter tido uma vida muito longa.
Mais recentemente, porém, alguns pesquisadores encontraram menções ainda mais antigas de fabricação de cerveja em periódicos do Rio de Janeiro. Na edição de 15 de novembro de 1831 do Correio Mercantil (RJ) aparece aquele que até o momento é o mais antigo anúncio de uma fábrica de cerveja em funcionamento na capital do Império:
Se a baunilha e o zimbro (também conhecido como junípero) eram usados na produção, a cerveja deveria ser muito interessante.
Nesse mesmo periódico, ao longo do mês de setembro de 1831, já haviam sido publicados outros três anúncios com o mesmo endereço da rua d’Ajuda 67, sempre anunciando a venda de zimbro e baunilha. Porém, o negócio era anunciado como uma loja de bebidas e não uma fábrica de cerveja: “Na loja de bebidas da rua d’Ajuda n. 67, vendem-se bagos de zimbro novamente chegados e baunilha de primeira sorte por preços muito cômodos” (o mesmo texto se repete nas edições de 7, 10 e 16 de Setembro). É também como loja de bebidas que o endereço aparece em um anúncio publicado no Correio Mercantil de 2 de novembro de 1831: “Na loja de bebidas da rua d’Ajuda n. 67 vende-se genebra, rum, cerveja, bagos de zimbro, baunilha, tudo por preço cômodo”.
O mesmo endereço aparece em outros dois anúncios, dessa vez um pouco inusitados. Na edição do Jornal do Commercio de 2 de setembro de 1831, o endereço aparece como um colégio de meninas: “O colégio de meninas, rua d’Ajuda n. 67, dirigido desde muito tempo por Mm. Furcy, recebe externas, se ensina conforme os mestres, a leitura, a escritura e aritmética, o francês, o inglês, a música e o desenho”. O que só se explica se acreditarmos que houve um erro de tipografia no número do endereço. Enquanto o Correio Mercantil de 16 de novembro de 1831 anuncia um terreno no Alto da Tijuca onde passar os dias tórridos do verão carioca:
“No momento em que se entra no estio, as pessoas que desejarem passar esta penosa estação em lugar fresco são avisadas: que se vende ou aluga por cômodo preço, na Tijuca, no primeiro grotão à direita, logo que se vence a subida, o sitio denominado Cascata da viúva, em terras foreiras da data do Visconde d’Asseca, com bonita casa de vivenda, muito arvoredo de espinho e mato virgem, dois córregos de água superior, além da cascata, dirijam-se para ver ao mesmo lugar aonde se acha um preto de guarda, e para ajustar na rua d’Ajuda n. 67 na fábrica de cerveja”. [grifo nosso]
Outro anúncio interessante relacionado à fábrica de cerveja em funcionamento na rua d’Ajuda 67 aparece na edição de 24 de maio de 1832 do Jornal do Commercio, na seção de escravos fugidos:
Como chama a atenção Eduardo Marcusso na sua tese Da Cerveja como Cultura aos Territórios da Cerveja, diante dessa notícia não podemos deixar de nos perguntar: seria feita por escravos a cerveja que foi primeiramente noticiada no Brasil? O anúncio nos dá a entender que a escrava fugida pertenceria à cervejaria ou ao seu proprietário. Mas são necessárias ainda mais pesquisas para responder a essa e a outras perguntas sobre a mão-de-obra empregada na fabricação de cerveja no Brasil no século XIX.
No mês de dezembro de 1832 são veiculados três anúncios da fábrica de cerveja da rua d’Ajuda nº 67. Dessa vez fazendo propaganda dos benefícios do consumo da cerveja durante os meses quentes do verão. Primeiro no Correio Mercantil de 15 de Dezembro: “Na fábrica de cerveja da rua d’Ajuda n. 67, acha-se a melhor cerveja muito em conta. O uso dela, durante o esiio [sic] é o mais apropriado possível para conservar o tom do estomago, que o calor excessivo tende à debilitar, disposição perniciosíssima quando o cólera morbus está se aproximando”. O mesmo texto é publicado na edição de 22 de dezembro do Correio Mercantil: “Na fábrica de cerveja da rua d’Ajuda n. 67, acha-se a melhor cerveja muito em conta. O uso dela durante o estio é o mais apropriado para conservar o tom do estômago que o calor excessivo tende a debilitar, disposição perniciosíssima quando o cólera morbus está se aproximando”. Por fim, um texto um pouco diferente é publicado no dia Correio Mercantil de 28 de dezembro:
Nesse último anúncio, pela primeira vez, a cerveja da rua d’Ajuda ganha um nome: Cerveja Nacional. Percebe-se que a cerveja era vendida por suas propriedades terapêuticas, principalmente durante o verão. E também que se recomendava bebê-la diluída em água para abrir o apetite e “ativar a circulação”. De quebra, o anúncio ainda nos lembra que o mundo passava por uma pandemia de cólera, que durou de 1826 a 1837. Mas essa doença vai desembarcar no Rio de Janeiro apenas em 1855, vitimando 11.180 pessoas.
No ano seguinte (1833), anúncio publicado no Jornal do Commercio de 3 agosto informa sobre a mudança de endereço da cervejaria: “A Fábrica Nacional de Cerveja mudou-se da rua d’Ajuda n. 67 para a rua da Misericórdia n. 29”. Mais dois anos se passam, a fábrica muda outra vez de endereço, dessa vez, para o nº 64 da mesma rua: “A fábrica de cerveja da rua da Misericórdia n. 29, mudou-se para o n. 64 da mesma rua” (Jornal do Commercio, nº 43, de 24 de fevereiro de 1835). Mas, no mesmo ano parece que a história da pioneira fábrica de cerveja do Brasil independente chega ao seu fim pois encontramos, ainda no Jornal do Commercio, dois anúncios de leilão dos bens da cervejaria. Primeiro sucintamente, na edição de 18 de março: “Vende-se por causa de moléstia o fundo da fábrica de cerveja, rua da Misericórdia n. 64, com uma porção de lúpulo de 36 a 40 arrobas. Dirigir-se à mesma casa”. E um mês depois o anúncio detalhado do leilão dos bens da cervejaria, na edição de 23 de abril:
Por esse último anúncio temos, finalmente, o nome dos proprietários dessa fábrica: os Srs. Vidal e Cia. Que, pelo que parece, devido a problemas de saúde resolvem liquidar os seus negócios no Brasil e retornar à Europa. Deixando a entender que eram naturais, muito provavelmente, de Portugal e não da Corte do Rio de Janeiro. E, chegando ao fim, podemos voltar ao início. Em anúncio publicado na edição de 28 de julho de 1827 do Diário Mercantil (RJ) tomamos conhecimento do (então) novo empreendimento de Vidal e Cia.
“Vidal e Cia. tem a honra de participar ao público que tendo posto em atividade a Fábrica de Destilação [ilegível] na Praia Formosa n. 67, eles se incumbem de destilar e restilar [sic] todas as qualidades de aguardentes e espíritos de qualquer [ilegível] em qualquer porção que se queira, assim como de fazer licores de todas as qualidades. Dirigir-se na dita Fábrica ou na casa de Raimundo Morunge irmãos, negociantes rua da Cadeia n. 45, ou de Nicolao Masson na mesma rua n. 186”.
Por dois anúncios publicados no Jornal do Commercio nos dias 26 e 27 de agosto de 1829, ficamos sabendo um pouco mais das atividades da destilaria de Vidal e Cia. Que, então, já havia se mudado para a Rua d’Ajuda 67. Os dois anúncios têm o mesmo texto: “Na fábrica de destilação da rua d’Ajuda n. 67, vende-se vinho de Catalunha a 120 rs. o quartilho, vinho de Bordeaux ordinario a 16 rs. ao quartilho, açúcar refinado a 160 rs. a libra, xarope de limão, capilé, rum, genebra &c. por preço cômodo”. Por anúncio publicado na edição de 11 de novembro do mesmo ano do Jornal do Commercio, ficamos sabendo que os proprietários da destilaria que funcionava na rua d’Ajuda 67 procuravam um alambique: “Quer se comprar na rua d’Ajuda n. 67, na fábrica de destilação, um alambique de 25 medidas. Quem quiser vender, dirija-se a casa acima ou anuncia a sua morada para ser procurado”.
Desse modo, estamos mais bem informados sobre a Fábrica de Cerveja Nacional do que sobre a Fábrica de Cerveja Brazileira, surgida em 1836. Talvez essa última tenha até se beneficiado do leilão de equipamentos da primeira, acontecido em 1835. Por aquilo que conseguimos levantar até o momento, a Cerveja Nacional parece ter funcionado entre 1831 e 1835 como desdobramento dos negócios de Vidal e Cia. Que haviam fundado uma destilaria em 1829. Essa informação já contradiz alguns paradigmas que, até então, caracterizavam a disseminação da produção de cerveja em território brasileiro. Como, por exemplo, a ideia de que as primeiras fábricas de cerveja teriam sido criadas por imigrantes germânicos. Não temos, até o momento, informações detalhadas sobre as origens do senhor Vidal e nem quem eram os seus sócios. Mas, pelo nome, não parecem ter origem germânica. Mas, como repetido muitas vezes ao longo desse texto, as pesquisas sobre o tema estão só no começo. E somente a sua continuidade podem responder a essas perguntas e a muitas outras que, com certeza, ainda vão surgir.
No meu canal no Youtube você pode assistir um video mais antigo (2020) que fiz sobre o tema. E vai perceber como a continuação da pesquisa já trouxe muitas informações novas.
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMANAK Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de janeiro para o ano de 1857. Tipografia Eduardo e Henrique Laemmert: Rio de Janeiro, 1857.
ALMANAK Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de janeiro para o ano de 1872. Tipografia Eduardo e Henrique Laemmert: Rio de Janeiro, 1872.
CORREIO MERCANTIL, 15 de Novembro de 1831.
CORREIO MERCANTIL, 16 de Novembro de 1831.
CORREIO MERCANTIL, 7 de Setembro de 1831.
CORREIO MERCANTIL, 10 de Setembro de 1831.
CORREIO MERCANTIL, 16 de Setembro de 1831.
CORREIO MERCANTIL, 2 de Novembro de 1831.
CORREIO MERCANTIL, 15 de Dezembro de 1832.
CORREIO MERCANTIL, 22 de Dezembro de 1832.
CORREIO MERCANTIL, 28 de Dezembro de 1832.
DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 22 de Dezembro de 1868.
DIÁRIO MERCANTIL, 28 de Julho de 1827.
JORNAL DO COMMERCIO, 26 de Agosto de 1829.
JORNAL DO COMMERCIO, 27 de Agosto de 1829.
JORNAL DO COMMERCIO, 2 de Setembro de 1831.
JORNAL DO COMMERCIO, 24 de maio de 1832.
JORNAL DO COMMERCIO, 3 de Agosto de 1833.
JORNAL DO COMMERCIO, 24 de fevereiro de 1835.
JORNAL DO COMMERCIO, 18 de Março de 1835.
JORNAL DO COMMERCIO, 23 de Abril de 1835.
JORNAL DO COMMERCIO, 27 de Outubro de 1836.
COUTINHO, Carlos Alberto Tavares. Cervisiafilia: a história das antigas cervejarias. Disponível em: http://cervisiafilia.blogspot.com.br/
KÖB, Edgar. Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 161 (409), 2000, p. 29-58.
MARCUSSO, Eduardo Fernandes. Da cerveja como cultural aos territórios da cerveja: uma análise multidimensional. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Geografia da UnB. 2021.
Comments