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História da cerveja no Brasil - parte 6 - A questão dos insumos

Atualizado: 23 de jul. de 2022


Salve nobres!

Já sabemos que desde os primeiros anos após a independência há relatos de produção de cerveja no Brasil. E que, mesmo antes da independência, os holandeses já haviam instalado uma fábrica de cerveja no Recife, durante o período em que colonizaram o Nordeste brasileiro ainda no século XVII. Porém, nós sabemos também que até hoje a produção de cerveja no Brasil é quase que completamente dependente da importação de insumos. Principalmente de lúpulo. Que só começou a ser cultivado no Brasil há pouco tempo. E a expansão da cultura da cevada no Brasil também é relativamente recente e deve-se em grande parte as iniciativas da própria indústria cervejeira, que fomentou a produção nacional para garantir oferta e pelo encarecimento do produto externo na década de 1970. Mas, segundo site da Embrapa, 85% da demanda de malte para a indústria cervejeira no Brasil hoje ainda é suprido através da importação. Então, o que os cervejeiros pioneiros usavam para produzir a sua cerveja lá no século XIX?


Dois caminhos básicos eram utilizados para suprir essa necessidade: substituição e importação. Edgar Köb, no seu artigo Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930, afirma que: “O abastecimento com cevada e lúpulo consistia (...) num problema permanente sendo que a cevada produzida aí [no Brasil] não alcançava os padrões de qualidade necessários e como ingrediente o lúpulo não era nem mesmo cultivado. Assim sendo, os fabricantes recorriam ao uso de ingredientes substitutos. Entre outros empregavam-se numa primeira fase milho, arroz e açúcar” (KÖB, 2000, p. 34)


Carlos Alberto Tavares Coutinho, no seu blog Cervisiafilia: a história das antigas cervejarias afirma (porém sem citar fontes) que os holandeses produziam “uma cerveja encorpada tipo swaar fermentada com cevada e açúcar”. Não há registros desse estilo no guia de estilos do BJCP e não consegui encontrar nenhuma informação sobre ele na internet. Tatiana Rotolo e Eduardo Marcusso afirmam no seu artigo A Cerveja no Brasil Holandês: notas sobre a instalação da primeira cervejaria no Brasil que, dadas as dificuldades enfrentadas para o abastecimento da colônia, a vasta produção de açúcar da região dominada pelos holandeses, a experiência do mestre-cervejeiro Dirck Dicx e a tradição das cervejas na Holanda do século XVII, “talvez a primeira cerveja brasileira tenha contido uma quantidade de malte de trigo e algum açúcar para facilitar a fermentação” (ROTOLO; MARCUSSO, 2019, p. 90)

Frans Post - Engenho de Pernambuco (1637-1644)


Voltando ao século XIX, anúncios no Jornal do Commercio registram a venda de cevada importada no Rio de Janeiro desde 1829. Propagandas repetidas ao longo de todo o segundo semestre do ano de 1836 anunciavam a venda de “Cevada muito boa” na rua Detrás do Hospício nº 64, por 1$500 o alqueire. E ainda tinha promoção “dá-se mais em conta a quem levar de 10 sacas para cima.”


Também em 1829, outro anúncio no Jornal do Commercio afirmava que uma fábrica nova de refinar açúcar, localizada na rua do Sabão nº 89, vendia cerveja, chá, chocolate e “outros gêneros de superior qualidade”. Pelo anúncio não dá pra saber se essa cerveja era importada ou fabricada lá mesmo. Mas, se for esse último o caso, é de se pensar que também levasse açúcar na sua composição, uma vez que era fabricada numa fábrica de refinar açúcar.


A partir da década de 1870, anúncios de cervejarias no Almanack Laemmert indicam que as próprias fábricas de cerveja no Rio de Janeiro importavam insumos e equipamentos, cujo o excedente vendiam para os seus “concorrentes”. Cito apenas dois dos vários exemplos que encontrei. O primeiro é um anúncio da Fábrica de Cerveja Commercio, na edição de 1873 que informa que eles eram: “Importadores de cevada preparada, inglesa e hamburguesa, lúpulo, cola, cápsulas, arame, máquinas de engarrafar e de arrolhar, alicates, rolhas, açúcar, barbante, copos, canecas, lâminas, rótulos de diversas marcas de cerveja estrangeira e todos os objetos concernentes ao fabrico de cerveja”. O curioso desse anúncio é a importação de açúcar. Produto amplamente produzido no Brasil. Será que na década de 1870 já não se produzia açúcar suficiente no Brasil para atender às necessidades das cervejarias?


Na edição de 1880, o anúncio da Fábrica de Cerveja Central repete praticamente o mesmo texto. Apesar de não ser a mesma cervejaria. Afirmando que eram: “Importadores de cevada preparada, lúpulo, cola, cápsulas, arame, lâminas e rótulos de diversas marcas de cerveja estrangeira, e todos os objetos concernentes ao fabrico de cerveja”. “Cevada preparada”, nesse caso, muito provavelmente deveria ser a cevada malteada. A diferença aqui, com relação ao anúncio anterior é que não se informa a procedência da cevada.


Com relação ao lúpulo, se você pensa que o seu cultivo em terras brasileiras é algo recente, se engana. Como aponta Daniel Taveira Oberlaender em pesquisa ainda inédita, há registros de seu cultivo no Rio Grande do Sul desde a segunda metade do séc. XIX, na colônia de São Lourenço. Cultivado por Curt August Adolf Wilhelm Ernst von Steinberg, barão de Hannover (1846-1893). A edição de 1909 do Almanak Literário e Estatísticos do Rio Grande do Sul traz um breve histórico da fundação da Colônia de São Lourenço, extraído das notas de Jacob Rheingantz (1817-1877), um dos seus fundadores, escritas em maio de 1867. Já no final do texto, escrito por Carlos Guilherme Rheingantz (1849-1909), filho mais velho de Jacob e sucessor do pai na administração da colônia, ao se referir ao estado atual da agricultura na colônia, o autor afirma:


“Seja-me lícito mencionar ainda os ensaios feitos na cultura do lúpulo, cuja exploração, na colônia, poderá ser, futuramente, fonte de grande receita. Foi o meu cunhado, o falecido barão Curt von Steinberg, quem a encetou, obtendo produtos muito bem aceitos. A análise das amostras, feitas no laboratório do Imperial Instituto de Agricultura pelo químico Otto Linger mostrou serem as plantas riquíssimas em substâncias amargas. Em 1.000 gramas acharam-se 26,5 gramas de substância amarga solúvel em água, 3,5 gramas de resina amarga solúvel em álcool e 6 centigramas de óleo etéreo aromático. Depois da morte de meu cunhado não houve, infelizmente, quem se interessasse pelo plantio dessa útil urticácia [sic] que, como já se disse, poderia constituir mais um elemento de prosperidade para a colônia” (RHEINGANTZ, 1909, p. 156).


Curt August Adolf Wilhen von Steinberg era casado Theresa Guilhermina Rheingantz (1851-1932), segunda filha de Jacob Rheingratz. Era filho do Barão de Steinberg, Ernst Georg Karl, emigrou para o Brasil por motivos desconhecidos, casando-se com Theresa Guilhermina em 1878. Morreu precocemente, aos 47 anos de idade e sem deixar filhos. Com a sua morte, termina também a experiência de plantio de lúpulo em são Leopoldo. A análise química do lúpulo produzido por von Steinberg em São Leopoldo, feita pelo doutor Otto Linger, responsável pelo laboratório de química do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, a que Rheingantz faz referência no seu texto foi publicada na edição de 1885 da Revista daquele instituto.


Aliás, já na sua primeira edição, publicada em 1869, a Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura traz uma nota de pouco mais de uma página sobre a introdução do lúpulo no Rio de Janeiro, feita pelo Comendador Antonio José Gomes Pereira Bastos (1828-1914). A nota informa que Pereira Bastos era proprietário “de uma importante fábrica de cerveja nesta cidade”. Como nos informa o Almanak Laemmert, Pereira Bastos era, desde o ano 1860, proprietário da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional, criada cinco anos antes por Alexandre Maria Villasboas, localizada na Rua de Matacavallos, nº 27. Informa a nota que, Pereira Bastos:


“desejando criar mais uma fonte de riqueza na agricultura do país, mandou vir de Alost (Bélgica) mil pés em estacas de lúpulo, que chegaram a esta cidade em abril do ano próximo passado, na galera Petropolis, do Havre. Estas mudas foram ofertadas ao Ministério da Agricultura para serem distribuídas por diversas colônias. Infelizmente, esse primeiro ensaior não foi coroado de resultados vantajosos, porquanto, dessas mudas poucas lograram vingar”. (Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, 1869, p. 58)



Pereira Bastos, porém, não se deixou abater pelo fracasso dessa primeira tentativa, feita em 1868. Dez anos antes, portanto, da chegada de von Steinberg à colônia de São Lourenço.


“Em Dezembro do ano próximo passado, encomendou a seus correspondentes de Paris e de Antuérpia mil pés de lúpulo de Alost, mil pés de Spalt (Baviera) e mil pés da Bohemia, que efetivamente chegaram à esta corte no corrente ano pelos paquetes ingleses Mendoza e City of Buenos Aires, e pelo francês Guienne, de Bordéus”. (Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, 1869, p. 58)


Essas 3000 mudas teriam sido distribuídas pelo Ministério da Agricultura, pelo Imperial Instituto Fluminense de Agricultura e pela Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional a vários lavradores. Tendo sido plantados também no Jardim Botânico e na chácara do próprio Pereira Bastos, localizada na Rua do Riachuelo 27 (cerca de 50 pés). Ou seja, na própria cervejaria, “onde grande número deles estão bem desenvolvidos”. (Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, 1869, p. 58)


A revista do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura voltaria a abrir espaço para falar do cultivo do lúpulo em outras duas ocasiões. Na edição nº 2, de 1877, se publicou uma História Natural do Lúpulo, texto anônimo de 4 páginas, na seção Noticiário Agrícola. Logo na introdução do texto, ao falar do uso do lúpulo na produção de cerveja o autor afirma que essa bebida “entre todas as bebidas é a mais nutritiva e sadia para a classe dos trabalhadores. Onde não se faz cerveja o trabalhador perde a metade dos recreios da vida, porque nenhuma bebida pode suprir esta” (Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, 1877, p. 61). Segue-se uma descrição botânica da planta que, em sua maior parte, deve já estar ultrapassada.


E, por fim, a seção Agricultura Prática, da edição de 1885 da mesma revista, escrita pelo engenheiro agrônomo Luiz Caminhoá traz as informações necessárias para aqueles que resolvessem se aventurar na cultura da planta como tipo de solo, modo de fazer a plantação, como combater as principais pragas, momento da colheita, etc. A mesma edição da Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura traz ainda a já citada análise do lúpulo da colônia de São Leopoldo, feita por Otto Linger.


A recorrência do tema naquela que talvez fosse a principal revista de agricultura e botânica do país só mostra que a cultura do lúpulo era considerada um importante recurso natural a ser explorado no Brasil no século XIX. Como está escrito no Noticiário Agrícola da edição de 1877: “Além disso, a cultura do lúpulo é a riqueza de um país porque, entre os gêneros de cultura na Alemanha, ele dá em terreno próprio à mais rica colheita e ocupa muitos braços” (Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, 1877, p. 61).


Se você quiser, também pode assistir um video que fiz sobre esse tema em 2020 e que está no meu canal no Youtube.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMANAK Administrativo Mercantil e Industrial da Cora do Rio de janeiro para o ano de 1873. Tipografia Eduardo e Henrique Laemmert: Rio de Janeiro, 1873.

BOSENBECKER, Patrícia. TRÊS GERAÇÕES DE EMPREENDEDORISMO: CAPITAL E LAÇOS SOCIAIS ENTRE BRASIL E ALEMANHA A PARTIR DO ESTUDO DE CASO DA FAMÍLIA RHEINGANTZ. Tese de doutorado em Sociologia. UFRGS, Porto Alegre, 2017.

CAMINHOÁ, Luiz. Agricultura prática – A cultura do lúpulo. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico, volume décimo sexto, nº 1, março de 1885, p. 37-42.

CHAVES, Ricardo. O barão alemão que trocou a realeza pelo rio Grande do sul. GZH Almanaque. Disponível em: O barão alemão que trocou a realeza pelo Rio Grande do Sul | GZH (clicrbs.com.br)

COUTINHO, Carlos Alberto Tavares. Cervisiafilia: a história das antigas cervejarias. Disponível em: http://cervisiafilia.blogspot.com.br/

Introdução do lúpulo no Rio de Janeiro pelo Sr. Comendador Antonio José Gomes Pereira Bastos. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico, nº 1, Setembro de 1869, p. 57-59.

Jornal do Commercio. Rio de Janeiro

KÖB, Edgar. Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 161 (409), 2000, p. 29-58.

LINGER, Otto. Chimica Analyptica - Lúpulo da colônia de São Lourenço no Rio Grande do Sul. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico, volume décimo sexto, nº 1, março de 1885, p. 160.

Noticiário agrícola – o lúpulo. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico, volume oitavo, nº 2, Junho de 1877, p. 61-65.

RHEINGANTZ, Carlos Guilherme. Colônia de S. Lourenço – Breve histórico de sua fundação, extraído das notas do arquivo de seu fundador Jacob Rheingantz. Almanak Literario e Estatistico do Rio Grande do Sul. Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre, 1909, p. 143-164.

ROTOLO, Tatiana; MARCUSSO, Eduardo. A cerveja no Brasil holandês: notas sobre a instalação da primeira cervejaria do Brasil. Contextos da alimentação: Revista de comportamento, cultura e sociedade. São Paulo: Centro Universitário Senac.Vol. 6, nº 1, Julho 2019, p. 73-93.




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