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História da cerveja no Brasil - parte 8 - A cerveja como forma de lazer

Atualizado: 26 de out. de 2022

Salve nobres,

Uma questão que frequentemente ocupa a cabeça de quem estuda história da cerveja no Brasil é: como a cerveja veio a se tornar a bebida preferida dos brasileiros, superando o vinho (importado de Portugal em grandes quantidades desde o período colonial), a cachaça (um produto tipicamente nacional) e outras bebidas fermentadas à base de frutas, açúcar, milho ou farinha de mandioca muito populares até o século XIX como o aluá, o jacubá, o xibê e a jinjibirra (esta última, uma bebida originária do Caribe, produzida com gengibre e muito semelhante à cerveja).

Edgar Köb tentou responder essa questão no seu artigo Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a indústria da cerveja no Brasil desde no início até 1930 (2000). Ele cita como fatores para a popularização do consumo de cerveja no Brasil, ainda no século XIX: o hábito das classes mais abastadas de imitar o estilo de vida europeu; a abolição da escravidão e a formação de uma classe de trabalhadores com poder de consumo; o desenvolvimento econômico no princípio do período republicano; o crescimento de grandes cidades como mercados consumidores e uma campanha de temperança que aconselhava o consumo de cerveja como uma bebida mais saudável que a cachaça e mais adaptada às condições tropicais do país.


Porém, Köb deixa de fora outro fator que parece ser tão importante quanto (ou até mais importante que) esses: a relação da cerveja com o lazer. A cerveja sempre acompanha os brasileiros nos momentos de lazer, de relaxamento e de confraternização: seja na praia, no churrasco, nas festas ou para acompanhar um jogo da seleção. Essa forma de consumo da cerveja é tão característica da cultura cervejeira do brasileiro, que acabou por “apagar” outras formas de consumo como a compreensão da cerveja como alimento ou como ingrediente culinário (comuns, por exemplo, na cultura cervejeira belga). A cerveja pode até acompanhar as refeições de alguns consumidores, mas certamente a grande maioria nem sequer cogita a possibilidade de abrir uma cerveja na hora do almoço de um dia útil.

Essa relação entre cerveja e lazer começou muito cedo, quando a indústria cervejeira ainda estava se estabelecendo no país. Como mostram Thaina Schwan Karls e Victor Andrade Melo, ainda em meados do século XIX as fábricas de cerveja no Rio de Janeiro, além de venderem a bebida, ofereciam outras formas de entretenimento. Dois anúncios publicados no Almanak Laemmert, nos anos de 1856 e 1857, de duas cervejarias diferentes que tinham o mesmo nome e ficavam na mesma rua, exemplificam essa relação entre cerveja e lazer. Primeiro, o anúncio da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional, de Alexandre Maria Villasboas e Cia., fundada em 1855 e que ficava na Rua de Matacavallos, 27:


Esta fábrica, já tão conhecida e frequentada pelos amadores desta corte, é por sem dúvida a mais bem montada que neste gênero existe no Império do Brasil e com todas as proporções para vir a ser o mais útil e agradável recreio dos Fluminenses, já pela extensa e pitoresca chácara em que está situada, pois naturalmente convida ao passeio o constante panorama que ao correr dos olhos se desliza, já pela multiplicidade de jogos, como sejam os de bola, bagatela, etc. etc, que oferece um exercício tão útil à saúde do corpo e do espírito, para o que nada tem poupado os seus proprietários. (Almanak Laemmert, 1856, p. 627)


A então Rua de Matacavallos é a atual Rua do Riachuelo, em pleno centro barulhento e engarrafado do Rio de Janeiro. Mas, em meados do século XIX ela se encontrava em uma região fronteiriça do centro, no limite entre o rural e o urbano, a caminho da Tijuca, espremida entre as encostas do Morro de Santa Teresa e do Senado (que ficava onde hoje é a Praça da Cruz Vermelha, demolido entre 1895 e 1906), em um ambiente cercado de muita vegetação nativa. O segundo anúncio é da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional de Henrique Leiden, fundada em 1848, que funcionava na mesma rua de Matacavallos, no número 78:


Achando-se o seu estabelecimento em um dos sítios mais amenos desta corte, a sua visita se recomenda a todos os amadores de recreios honestos e sociais, os quais, além de ótima cerveja de vários gostos, encontrarão arranjos cômodos, caramanchões, diversos jogos e boas companhias. (Almanak Laemmert, 1857, p. 95)


A edição de 8 de abril do mesmo ano do jornal Correio da Tarde traz um relato de um anônimo, que visitou a fábrica de Alexandre Maria Villasboas a convite do seu proprietário. Como relatam Karls e Melo, chamou a atenção do convidado a gentileza dos funcionários, “a conversa animada que se dava não só ao ar livre, à luz do luar, como também no salão, iluminado a gás (...). Jovens fazendo ginástica em aparelhos oferecidos pela fábrica, bem como apresentações musicais e danças” (KARLS e MELO, p. 150). Afirmam os mesmos autores que o funcionamento da fábrica de Henrique Leiden era similar ao da fábrica de Villasboas, com frequentes apresentações musicais e de exercícios ginásticos, com performances de amadores que usavam os aparelhos de ginástica oferecidos pela fábrica. Em determinado momento, Leiden fundou também um teatro no espaço da fábrica. Que, em 1861, se chamava Teatro da Imperial e Antiga Fábrica de Cerveja. Essa foi umas das formas que esses primeiros produtores de cerveja encontraram para popularizar o seu consumo entre uma população que estava mais acostumada a outras bebidas, como o vinho e a cachaça. Que, ainda por cima, eram mais baratas.


Estratégia semelhante parece ter sido utilizada por Jacob Wendling, um filho de suíços nascido em Petrópolis, na serra fluminense, proprietário do Bar Zum Schlauch, aberto em 1887 na Rua da Assembleia, 102. Um ano após a inauguração, graças a um bem sucedido acordo comercial com a recém-criada Companhia Cervejaria Brahma (de propriedade do também imigrante suíço Joseph Villiger), Wendling iniciou a comercialização da cerveja na pressão a partir do barril: o famoso chopp. Forma de serviço que até então, provavelmente, só poderia ser encontrada nas próprias cervejarias. O nome do seu bar, Zum Schlauch, pode mesmo ser traduzido como “A Mangueira” ou “A Serpentina”, se referindo à forma de serviço do chopp.

Com cardápio dedicado à culinária alemã, nos seus primeiros anos o Zum Schlauch atendia majoritariamente a imigrantes germânicos. Wendling levou para trabalhar com ele o seu afilhado, Adolf Rumjaneck, que em pouco tempo se tornou conhecido pela clientela do bar pelo seu talento na queda de braço, esporte que praticava em uma mesa de mármore nos fundos do bar. Nos conta a historiadora Daiana Crús Chagas que Rumjaneck utilizou esse seu talento para disseminar o consumo de chopp. Ele desafiava os clientes da casa para uma disputa de queda de braço e, em caso de vitória, o freguês podia beber o que quisesse por conta da casa. Em caso de derrota, teria que beber chopp e ainda pagar a conta. Em 1908, Wendling parte para a Suíça entregando a propriedade do bar a Rumjaneck. Já então, o estabelecimento era conhecido pelo nome de “Braço de Ferro”. Depois de muitas trocas de nome e de endereço, o bar é conhecido hoje como Bar Luiz, localizado na Rua da Carioca.


Já a relação entre cerveja e futebol (outra paixão nacional) é ressaltada na trajetória da Companhia Antarctica Paulista, fundada em São Paulo em 1885 pelo cervejeiro alemão Louis Bücher em associação com Joaquim Salles, proprietário de um abatedouro de suínos. Como explica Diógenes Sousa, para a promoção da venda de seus produtos, a Companhia Antarctica Paulista investia na construção de equipamentos urbanos, que faziam uma ligação entre cerveja e entretenimento para a população. Nesse sentido, foram criados, teatros (Polytheama e Bijou), cinemas (Cine Central), e um parque com eventos até para crianças.


Em 1902, a cervejaria criou um parque próximo à sua sede, no bairro da Água Branca, para oferecer opções de lazer aos funcionários. O espaço de 300 mil metros quadrados abrangia uma vasta área verde (com um pequeno lago, coreto e bosques), parque infantil, restaurantes, choperia e instalações esportivas, como pista de atletismo, quadras de tênis e um dos primeiros campos de futebol de São Paulo. Era frequentado não apenas pelos funcionários da companhia, mas por uma multidão nos fins de semana e feriados.


Como a modalidade estava se tornando popular no começo dos anos 1900, a empresa passou a alugar o campo de futebol para alguns clubes. Entre os quais, o Palestra Italia (atual Palmeiras) passou a realizar seus jogos no campo do parque desde 1917. Em 1920 o Grupo Antarctica mudou-se integralmente e definitivamente para sua nova sede na Mooca. Respaldado pelas Indústrias Matarazzo, o Palestra Itália comprou o campo de futebol e grande parte do terreno do Parque Antarctica por 500 contos de réis, uma verdadeira fortuna à época. Uma das condições impostas pela Antarctica para a venda era a exclusividade da venda de produtos da cervejaria no local por 99 anos!


Eduardo Marcusso, por sua vez, nos lembra que foi fundamental para a popularização do consumo de cerveja no Brasil a sua relação com as grandes festividades de expressão nacional, como o Carnaval. Afirma o autor que em 1913, o rancho carnavalesco Recreio das Flores, criado por membros do Sindicato dos Estivadores do Porto do Rio em 1903, havia sido patrocinado por uma cervejaria.


No Carnaval de 1934, para promover as vendas da sua cerveja engarrafada, a Brahma lançou a marchinha “chopp em garrafa”, considerado o primeiro jingle da publicidade brasileira, composta por Ary Barroso (compositor de “Aquarela do Brasil”) e Bastos Tigre (jornalista e publicitário, criador do slogan “Se é Bayer, é bom”) e cantada por Orlando Silva, também conhecido como “o cantor das multidões”, que fez muito sucesso na era do rádio.


Essa relação se estreitou a partir de 1978, quando o desfile das principais Escolas de Samba passou a ser realizado na Avenida Marquês de Sapucaí, em frente à primeira fábrica da Cervejaria Brahma. Com a construção da Passarela do samba, em 1984, a Brahma passa a ter um camarote para a diretoria e seus convidados. Em 1991 cria o seu Camarote nº1, ação de marketing que utilizava o slogan da cervejaria na época (“A nº1”). Em 2010, o espaço foi lembrado no samba-enredo “Das arquibancadas ao camarote nº1... um Grande Rio de emoção na apoteose do seu coração”, da escola de samba Grande Rio. As obras de ampliação das arquibancadas da Passarela do Samba impuseram a necessidade de implosão da antiga fábrica da Brahma, que era protegida por um tombamento estadual desde 2001. O tombamento foi revogado e o prédio foi implodido em 2011. As obras de ampliação, no valor de R$ 50 milhões, foram custeadas pela Ambev.

Como ressalta Marcusso, existe uma verdadeira “guerra da cerveja” pelo patrocínio do Carnaval: “Essa disputa é tão ferrenha, que existe uma ‘divisão territorial’ da cerveja no carnaval. Cada cidade de cada tipo de festa (blocos de rua, desfiles oficiais, camarotes, etc.) tem sua cervejaria patrocinadora e isso muda a cada ano, conforme a estratégia de marketing das empresas” (MARCUSSO, 2021, p. 291).


Dessa forma, a associação da cerveja à momentos de lazer e descontração foi utilizada por fábricas e bares desde o começo da disseminação da produção de cerveja no Brasil como forma de popularizar o consumo da bebida. E continua sendo usada até ainda hoje. Marcando, como disse antes, a cultura cervejeira brasileira.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMANAK Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de janeiro para o ano de 1856. Tipografia Eduardo e Henrique Laemmert: Rio de Janeiro, 1856.

ALMANAK Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de janeiro para o ano de 1857. Tipografia Eduardo e Henrique Laemmert: Rio de Janeiro, 1857.

CHAGAS, Daiana Crús. Botequim, Boemia e Tradição: a trajetória de um patrimônio cultural do Rio de Janeiro. 2007. Disponível em: Curiosidades (barluiz.com.br)

KÖB, Edgar. Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da indústria de cerveja no Brasil desde o início até 1930. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 161 (409), 2000, p. 29-58.

MARCUSSO, Eduardo Fernandes. Da cerveja como cultural aos territórios da cerveja: uma análise multidimensional. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Geografia da UnB. 2021.

MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. Cerveja e Aguardente sob o foco da temperança no Brasil, no início do século XX. Revista Eletrônica de História do Brasil. v.9, n.1, jan-jul 2007, p. 48-70.

MELO, Victor Andrade; KARLS, Thaina Schwan. Novas dinâmicas de lazer: as fábricas de cerveja no rio de janeiro do século XIX (1856-1884). Movimento: Revista de Educação Física. Porto Alegre, vol. 24, n# 1, p. 147-160, jan./mar. 2018. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/download/69803/47800

SOUSA, Diógenes. Cidade e Cerveja: Companhia Antarctica Paulista e urbanização em São Paulo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PUC Campinas, 2017.

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