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O Mito medieval da água

Atualizado: 12 de ago. de 2023


Salve nobres!

Parece consenso que a cerveja representou uma parte essencial da dieta medieval inglesa, em particular, e europeia, em geral. A quantidade exata de cerveja ingerida per capita diariamente não é conhecida. Mas, a partir de registros da Catedral de São Paulo (de Londres) do final do século XIII, supõe-se que o consumo poderia chegar a um galão (aproximadamente 4,5 litros) diário por pessoa (CORNELL, 2014). Apenas como forma de comparação, o país com o maior consumo anual per capita de cerveja em 2018 era a República Tcheca, com 191,8 litros. O que equivaleria a cerca de 0,5 litros diários apenas (Fonte: Global Beer Consumption by Country in 2018 | 2019 | Kirin Holdings). Dessa forma, popularizou-se a ideia de que o camponês da Idade Média bebia muito mais cerveja do que uma pessoa comum dos dias de hoje. Essa ideia é geralmente complementada por uma outra: a de que o grande consumo de cerveja se devia ao fato de que a água não era segura para a saúde. A cerveja seria mais acessível e saudável, uma vez que o seu método de preparação (por meio da fervura) eliminaria as impurezas da água.


Mas se tem uma coisa de que historiadores não gostam é de consensos. Aquelas informações tão amplamente repetidas que acabam se tornando “verdades” inquestionáveis e evidentes. Porém, sem qualquer embasamento documental. Por isso, passou da hora de nos perguntarmos: será que o homem da Idade Média bebia realmente tanta cerveja a mais do que o homem de hoje em dia? E será que o fazia porque ele realmente não podia beber água? O objetivo desse texto é tentar responder essas duas perguntas e verificar se esse consenso é confirmado pelas pesquisas históricas.


Começando pela segunda. A tese de uma carência de água potável na Europa medieval parece estar apoiada na ideia de que a Europa passou por retrocesso no aspecto sanitário urbano no início da Idade Média, à medida em que retrocedia o domínio do Império Romano. Os romanos faziam captações de longa distância, abastecendo as cidades por meio de aquedutos e tubulações subterrâneas. São famosas as suas termas (banhos públicos), que não podiam faltar em qualquer agrupamento humano que merecesse o nome de “cidade”.

Ao longo da Alta Idade Média, muitas dessas estruturas se transformaram em ruinas à medida em que a gestão do saneamento passou das mãos dos governos centrais para as administrações comunais (municipais). A captação de água passaria a ser feita, em grande parte, por meio de poços (na sua maioria particulares). Muitos dos quais seriam escavados próximos a fossas e à área de criação de animais, o que favorecia a proliferação de doenças como cólera, lepra e tifo.


Mas pesquisas históricas demonstram que não foi bem assim que as coisas se passaram. A documentação mostra que o abastecimento de água potável estava entre as principais preocupações das administrações municipais. Maria do Carmo Ribeiro (professora da Universidade do Minho), que estudou os espaços e arquiteturas de abastecimento nas cidades medievais portuguesas, identifica a presença constante também de cisternas, tanques, fontes e chafarizes, para captação e distribuição de água. Esses últimos serviam, inclusive, como espaço de sociabilização da população urbana. Era feita também a captação no exterior dos núcleos urbanos, conduzindo-a até a cidade por meio de encanamentos ou aquedutos:


A importância da água como bem essencial à vida fez da sua presença nos núcleos urbanos, nomeadamente naqueles onde se registram níveis demográficos significativos, uma presença constante e diária, circunstâncias que originam usos bastante diversificados, mas sobretudo formas de abastecimento e gestão bastante díspares, algumas das quais contribuem fortemente para a configuração da paisagem urbana medieval. Referimo-nos concretamente aos poços, tanques, fontes e chafarizes, que integram os espaços urbanos medievais e que permitiam o seu abastecimento (RIBEIRO, 2020, p. 385-386).


Ressalta ainda Maria do Carmo Ribeiro que, para além do uso doméstico (lavar roupa, dar de beber aos animais) a água era igualmente fundamental para algumas atividades econômicas de produção e transformação necessárias ao abastecimento da cidade tais como o abastecimento de carnes e peixes, peles e couros que, devido a matança dos animais, produzia muita sujeira e requeria água. E, por esse mesmo motivo, ressalta a autora, essas atividades se localizavam, de preferência, afastadas dos núcleos urbanos. Dessa forma, a água deveria estar disponível para consumo de muitas formas. Mas, a sua maior presença nos núcleos urbanos medievais, segundo essa autora ocorria por meio dos rios que, invariavelmente, cortavam as cidades. Sua presença era fundamental para o próprio desenvolvimento do núcleo urbano, constituindo-se em um “forte atrativo para a realização de atividades comerciais, produtivas e portuárias relacionadas com a prática da navegação fluvial e marítima” (RIBEIRO, 2020, p. 391).

Passando de Portugal para a Itália, Michael Kucher estudou o abastecimento de água da cidade de Siena, localizada na região da Toscana na Itália central, durante os séculos XIII e XIV a partir das regulamentações municipais que visavam disciplinar o uso da água. Construída sobre três colinas em uma região onde a precipitação anual não chega a um metro cubico de água, que já foi chamado por um historiador de “o lugar mais seco da Europa” (KUCHER, 2005, p. 505). A cidade era abastecida por um sistema de mais de 60 fontes, alimentadas por aquedutos subterrâneos. Entre os séculos XIII e XIV, Siena atingiu seu pico populacional e de desenvolvimento econômico. Seu governo, então, se preocupou cada vez mais em regular o abastecimento de água de modo a garantir que a cidade continuasse a se desenvolver. Em suma, o que os estatutos sienenses procuraram criar foi uma ordenação hierárquica do uso da pouca água captada e encaminhada para a rede de fontes da cidade de modo a maximizar os recursos e, ao mesmo tempo, proteger o ambiente urbano:


Os estatutos incluíam disposições para garantir um abastecimento mínimo adequado de água para todos os usuários, prevenir a contaminação do abastecimento de água, descartar adequadamente a água poluída e confinar atividades nocivas a distritos industriais especificados. Os regulamentos se aplicavam a todos os usuários de água, tanto corporativos quanto individuais (KUCHER, 2005, p. 509).


Os usos da água foram divididos em três categorias principais: aplicações industriais, combate a incêndios e uso pessoal e doméstico. Esse último tinha ocupava o topo da hierarquia de usos da água. De modo que a água era usada primeiramente para se beber, cozinhar, dar de beber aos animais, tomar banho ou lavar roupas. Hierarquicamente, em segundo lugar vinha a utilização da água para o combate e prevenção a incêndios. Por último, vinham as atividades industriais, como macerar linho, tingir tecidos, lavar carnes e peles e curtir couro, que tinham um maior potencial para poluir a água e o ambiente urbano, e só podiam ser realizadas em fontes específicas e afastadas do centro da cidade. Ou mesmo fora dos seus muros. Geralmente, a jusante de todas as outras, para que a água depois de usada corresse para uma vala, passando por baixo das muralhas da cidade e fluindo para os córregos. Dessa forma, para se aproveitar ao máximo a água captada, ela era reutilizada diversas vezes antes de deixar a cidade.


Por fim, Kucher chama a atenção para o fato de que a preocupação dos legisladores de Siena com a limpeza e a beleza da cidade contrasta com a imagem de sujeira vigentes no senso comum sobre as cidades medievais:


Tais imagens, à luz dos estatutos contemporâneos, sugerem um ideal urbano muito distante das noções de sujeira e desordem medievais que persistem no imaginário popular de hoje. (...) Em suma, a limpeza pode ser mais facilmente definida pelo que não é: cheiros fétidos, sujeira espalhada nas ruas ou contaminação da água por lama, lavagem de roupas ou curtimento de couro (KUCHER, 2005, p. 510).


Por fim, atravessamos o Canal da Mancha, para observar o abastecimento de água no Reino Unido. Como informa o jornalista britânico Martyn Cornell, no seu artigo intitulado Was water really regarded as dangerous to drink in the Middle Ages?, publicado no seu site Zythophile, na Londres do século XIII, à medida em que a população crescia e os muitos poços e cursos de água que anteriormente abasteciam os londrinos eram cercados de construção e cobertos e tinham suas águas tornadas impróprias para o consumo, a administração municipal foi obrigada a buscar águas doces em outros pontos mais afastados da cidade.


Em 1237, então, a municipalidade de Londres, atendendo a um pedido do Rei Henrique III, adquiriu as nascentes do rio Tyburn, a cerca de três quilômetros da Catedral de São Paulo, e lá construiu um pequeno reservatório. Os trabalhos de encanamento foram iniciados em 1245. Canos de madeira (a princípio) levavam água para um grande reservatório que ficava no Green Park. Esse sistema ficou conhecido como “The Great Conduit”. Esse foi o primeiro e mais importante bebedouro público da cidade. Nenhum outro parece ter sido construído até o final do século XIV. Até a década de 1360 a gestão do sistema estava a cargo de um grupo de 4 homens, conhecidos como os “guardiões do Conduit”, que eram eleitos pelos homens bons da vizinhança e eram responsáveis pela manutenção e por ligar e desligar o fluxo de água.


Em 1345 foi declarado que o Conduit havia sido construído para que pessoas das classes ricas e médias pudessem ter água para preparar alimentos e os pobres para beber. No início do século XIV, porém, parece que as demandas comerciais estavam ameaçando o abastecimento doméstico. O juramento dos Guardiões do Conduit em 1310 incluía o compromisso de impedir que cervejeiros e peixeiros utilizassem a água e de não vender a água de noite ou de dia. Em 1312 já era cobrada uma taxa daqueles que usassem a água para suas atividades comerciais. Dinheiro que devia ser utilizado na manutenção do próprio sistema. Eram comuns as reclamações sobre o uso excessivo da água por parte das cervejarias da vizinhança. Em 1337, como uma tentativa de limitar o consumo da água pelos cervejeiros, foi ordenado aos Guardiões que apreendessem as tinas e recipientes que eram levados para serem abastecidos. Em 1345 os cervejeiros foram proibidos de usar a água para os seus negócios sob a pena de perder os seus recipientes e o pagamento de multa. Em 1415 esse sistema foi alterado e os cervejeiros passaram a ter o direito de tirar água do “grande cano de água do Conduit” mediante o pagamento de uma espécie de aluguel.

Posteriormente, o sistema foi reformado e ampliado, com a construção de outras fontes a partir do mesmo encanamento. The Great Conduit foi utilizado até o grande incêndio que assolou Londres em 1666 e arruinou o sistema. Foi ordenada a sua remoção e os materiais foram vendidos. Segundo D. J. Keene e Vanessa Harding, àquela altura talvez o Conduit já não fosse muito utilizado, pois muitas, senão a maioria, das casas do bairro dispunham de água encanada própria (KEENE; HARDING, 1987, p. 612-616).


Os casos de Portugal, Siena e Londres, trazidos aqui, mostram que a ideia de uma carência de água potável nas cidades medievais não corresponde com o que nos mostram as pesquisas históricas. Seria o que o blogueiro norte-americano de História da Alimentação Jim Chevalier (cujas pesquisas são expostas no já citado artigo de Cornell), denomina de “O Grande Mito Medieval da Água”. Segundo Chevalier, o consumo de água certamente era mais difundido do que muitos comentaristas modernos parecem acreditar, principalmente pelos menos abastados:


Não há nenhuma razão específica para acreditar que as pessoas da época bebiam proporcionalmente menos água do que hoje; em vez disso, como a água normalmente não era vendida, transportada, tributada etc., simplesmente não haveria razão para registrar seu uso. As pessoas da época preferiam bebidas alcoólicas? Provavelmente, e pela mesma razão que a maioria das pessoas hoje bebe outros líquidos além da água: variedade e sabor (CORNELL, 2014).


Michael Kucher também faz uma reflexão nesse mesmo sentido ao falar do silêncio legal nos estatutos sobre o uso da água em Siena sobre o uso pessoal da água. Com exceção de alguns estatutos que determinam a construção de fontes ou poços para conveniência dos viajantes. Ele chama a atenção para o fato de que essa ausência pode levar a crer que as pessoas na Idade Média nunca bebiam água, porém a literatura prescritiva do período sugere o contrário:


O consumo de água como bebida estava implicitamente entre as razões para trazer água para Siena e explicitamente no topo da hierarquia de usos, porque a água potável era o tipo de água mais bem protegido. O silêncio dos estatutos provavelmente indica apenas que o consumo de água potável levou a poucos abusos – pelo menos, aqueles para os quais havia um remédio legal (KUCHER, 2005, p. 524).


Curiosamente, segundo as pesquisas de Chevalier, comentadas por Cornell, uma das responsáveis pela má fama que a água viria ganhar em comentaristas posteriores parece ter sido a freira beneditina Hildegard von Bingen (1098-1179). Mestra do mosteiro de Rupertsberg na cidade de Bingen am Rhein, na Alemanha e mais conhecida por ter sido a primeira autora a ressaltar as propriedades do lúpulo para a produção de cerveja. Na sua obra Causas e Curas ou Livro da Medicina Composta ela afirma:


se alguém está saudável ou enfermo, se alguém está com sede depois de dormir, deve beber vinho ou cerveja, mas não água. Pois a água pode prejudicar em vez de ajudar o sangue e os humores (...) a cerveja engorda a carne e (...) empresta uma bela cor ao rosto. A água, no entanto, enfraquece a pessoa (CORNELL, 2014).


Em outra passagem, afirma também “Aquele cujos pulmões doem de alguma forma (…) não deve beber água, pois produz muco ao redor dos pulmões (…) A cerveja não faz muito mal, porque foi fervida”, e quem tomou um purgante “pode beber vinho com moderação, mas deve evitar água” (CORNELL, 2014). Talvez encontremos aí a origem da ideia de que a cerveja seria mais saudável do que a água, porque a fervura a purifica. Porém, ressalta Chevalier, ela não condenava universalmente o consumo de água e, de fato, o recomendava para matar a sede. Na seção sobre o sal da sua Física ou Livro de medicina Simples, ela afirma: “É mais saudável e sensato para uma pessoa com sede beber água, em vez de vinho, para saciar sua sede” (CORNELL, 2014).


Mas ela certamente achava que as pessoas deviam ter cuidado com a água, ocasionalmente, ao bebê-la. Na seção específica da Física sobre a água, Hildegard fez comentários sobre a qualidade das águas de vários rios alemães. Sobre o Sarre, ela afirma: “Sua água não é saudável nem para beber doce nem para ser consumida cozida na comida”. Sobre o Reno: “Sua água, ingerida crua, agrava uma pessoa saudável... se a mesma água for consumida em alimentos ou bebidas, ou se for derramada sobre a carne de uma pessoa no banho ou na lavagem do rosto, ela incha a carne, tornando-a inchada e escura". As águas do Main já seriam mais recomendáveis: “sua água, consumida na comida ou na bebida... torna a pele e a carne limpas e macias. Não muda uma pessoa nem a deixa doente”. No entanto, as águas do Danúbio não eram recomendadas: "Sua água não é saudável para comida ou bebida, pois sua aspereza fere os órgãos internos de uma pessoa" (CORNELL, 2014).


Dessa forma, conclui Chevalier que o consumo de água não era recomendado em todos os momentos e em todos os lugares, mas certamente, também não foi condenada de vez. E não há dúvida de que a água foi bebida pelos pobres e, provavelmente, também por indivíduos dos outros estratos sociais: “Como não havia chá, café ou suco de frutas, e o leite não duraria muito, restava apenas uma outra bebida para o camponês sedento - a água” (CORNELL, 2014). Creio não ser necessárias provas adicionais de que, sim, se bebia água durante a Idade Média. Assim como durante toda a existência da humanidade, a água era a bebida mais consumida também durante a Idade Média. Simplesmente porque era gratuita.


Outra hipótese para o surgimento ou para a fixação do mito está na repetição da história, ora atribuída a Santo Arnulfo de Metz, ora a Santo Arnaldo de Soissons, de que durante uma crise de peste que assolou algumas cidades belgas, o(s) santo(s) incentivaram a população a beber cerveja no lugar da água porque essa última estaria contaminada. A cerveja seria, então, mais segura do que a própria água por ter sido fervida, eliminando os microrganismos nocivos. É importante atentar para o fato de que essa afirmação contem um anacronismo. Que consiste em atribuir aos homens de outra época um conhecimento que é nosso. Mas que eles não tinham. No caso, o de que ferver a água a livraria de microrganismos. Uma vez que os homens da Idade Média não faziam ideia da existência de microrganismos. E, por isso, não ferviam a água com a intenção de purificá-la.


Uma variação desse discurso é a de que se preferia consumir cerveja à água em ocasiões específicas como, por exemplo, durante o cerco a castelos e cidades, quando era comum que os sitiadores envenenassem a água. Ou durante as pestes, como a Peste Negra, de meados do século XIV. Essas são situação totalmente plausíveis. E fazer uma afirmação desse gênero é bastante diferente da afirmação genérica de que “a água (que água?) na Idade Média (durante todos os 10 séculos da Idade Média, em todos os lugares da Europa?) era poluída e por isso as pessoas preferiam beber cerveja”, que caracteriza aquilo que estamos chamando aqui, seguindo Jim Chevalier e Martyn Cornell de Mito Medieval da Água.


Mas ainda que a contaminação da água fosse certamente uma preocupação, as pessoas tinham bom senso e discernimento suficiente para saber detectar e evitar águas lamacentas, pantanosas ou turvas, que poderiam estar contaminadas. E se as pessoas preferiam beber cerveja ou vinho, não era necessariamente porque a água era ruim. Mas porque gostavam do seu sabor e efeito. Exatamente como nós. Por último, mas não menos importante, nessa discussão sobre a qualidade da água na Idade Média é preciso também estar atento para evitar os anacronismos. É importante compreender que aquilo que era considerado “água potável” na Idade Média, provavelmente não passaria em um controle de qualidade da água nos dias de hoje. É hora de nos ocuparmos da segunda questão: o homem da Idade Média bebia realmente tanta cerveja a mais do que o homem de hoje em dia?


Martyn Cornell questiona a ideia de que o consumo de cerveja pudesse chegar a um galão diário por pessoa, como afirma o documento do século XIII da Catedral de São Paulo, citado no início deste texto. Analisando a situação do Reino Unido, segundo ele, o país simplesmente não seria capaz de cultivar grãos suficientes para manter esse consumo e ainda atender à demanda por pão. Em um artigo publicado recentemente no seu site, intitulado So how much ale did a medieval peasant actually drink? Much, much less than you think (Então, quanta cerveja um camponês medieval realmente bebia? Muito, muito menos do que você pensa), Cornell analisa as estatísticas de produção de grãos no século XIV a partir de relatos senhoriais e registros de mosteiros e abadias. E chega à conclusão de que: “O aldeão medieval médio há 700 anos provavelmente bebia menos do que você, caro leitor”. (CORNELL, 2022)


Ele calcula que em 1300 a Inglaterra deveria ter cerca de 3,5 milhões de indivíduos com idade para beber cerveja. Se eles bebessem apenas cerveja, como diz o senso comum, esses adultos precisariam de um pouco menos de 560 milhões de galões de cerveja por ano, no mínimo. Na idade Média, um quarto de malte produzia 35,3 galões de cerveja forte e 60 galões de cerveja fraca, totalizando 95,3 galões. Logo, para produzir cerveja suficiente para dar a cada adulto sua ingestão mínima de líquido todos os dias (3,5 litros segundo o governo do Reino Unido), seriam necessários pouco mais de 5,86 milhões de quartos de malte por ano. E, para obter todo esse malte, seriam necessários 4,88 milhões de quartos de grãos crus. Baseado nas pesquisas de Broadberry, Campbell e Van Leeuwen, Cornell afirma que a produção de grãos na Inglaterra para o período de 1275-1324 foi de: 2,25 milhões de quartos de trigo, 660.000 quartos de centeio, 1,17 milhão de quartos de cevada e 1,8 milhão de quartos de aveia. Formando um total de 5,58 milhões de quartos de grãos crus: “Assim, para fornecer a cada adulto do país três canecas e meia de cerveja por dia, o mínimo para se manter hidratado se você não estiver bebendo água, seria necessário que 83% de toda a produção de grãos do país fosse usada para fabricação de cerveja. Isso é, obviamente, um absurdo sem sentido”. (CORNELL, 2022)

De acordo com os cálculos de Slavin, citados por Cornell, apenas cerca de 8% da produção total da safra era maltada. Cerca de 560.000 quartos de malte. O que seria suficiente para fazer pouco menos de 53,8 milhões de galões de cerveja por ano, 15,37 galões de cerveja por adulto por ano, ou um terço de um litro por dia – 2,36 litros por semana por camponês. Assim, conclui Cornell que, ao contrário do que se pensa, os camponeses da Inglaterra do século XIV bebiam notavelmente pouca cerveja. Em vez disso, eles bebiam água. Argumenta Cornell que:


A grande afluência de cerveja nos mosteiros certamente sugere que havia pouco consumo de água por trás dos seus muros: mas no mundo lá fora, onde a fabricação de cerveja no início da Idade Média, fora de grandes instituições, cidades ou grandes vilas, provavelmente dependia de chefes de família com o ocasional excedente de capital. para comprar alguns grãos maltados, preparar um lote de cerveja e colocar a tradicional vassoura do lado de fora da porta da frente para que seus vizinhos passassem para beber um pint de cerveja, parece provável que o álcool fosse um deleite mais do que uma ocorrência diária regular (CORNELL, 2014)


A minha hipótese é a de que a ideia de uma insalubridade dos núcleos urbanos medievais, não apenas da sua água, mas também do seu terreno e do seu ar, parece ser mais adequado às aglomerações urbanas contemporâneas. Frutos das Revoluções Industriais. Imagem que nós projetamos sobre a Idade Média devido à nossa visão preconceituosa e estigmatizada sobre aquele período como o “período das trevas”.


E se você quiser, também pode assistir a live que eu fiz sobre o tema em 2021 no Instagram e que está salva no nosso canal do Youtube:


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CORNELL, Martyn. Was water really regarded as dangerous to drink in the Middle Ages?. Zythophile. 04/03/2014. Disponível em: http://zythophile.co.uk/2014/03/04/was-water-really-regarded-as-dangerous-to-drink-in-the-middle-ages/


CORNELL, Martyn. So how much ale did a medieval peasant actually drink? Much, much less than you think. Zythophile. 12 de julho de 2022. Disponível em: So how much ale did a medieval peasant actually drink? Much, much less than you think – Zythophile


KEENE, D.J.; HARDING, Vanessa. St. Mary Colechurch 105/36: St. Mary Colechurch, the great conduit. Historical Gazetteer of London Before the Great Fire Cheapside; Parishes of All Hallows Honey Lane, St Martin Pomary, St Mary Le Bow, St Mary Colechurch and St Pancras Soper Lane. London: Centre for Metropolitan History, 1987. p. 612-616. Disponível em: http://www.british-history.ac.uk/no-series/london-gazetteer-pre-fire/pp612-616.


KUCHER, Michael. The use of water and its regulation in Medieval Siena. Journal of Urban History. Vol. 31, nº 4, maio 2005, p. 504-536.


RIBEIRO, Maria do Carmo. Espaços e arquiteturas de abastecimento na cidade medieval. In: ANDRADE, Amélia Aguiar; SILVA, Gonçalo Melo da (editores). Abastecer a cidade na Europa Medieval.Lisboa: Tipografia Priscos, 2020, p. 383-402.

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