top of page
  • profanograal

Uma bebida dos deuses - a cerveja na cultura nórdica

Atualizado: 23 de jul. de 2022

Salve nobres,

Você já deve ter escutado, ou até mesmo dito, em uma mesa de bar, que a cerveja é sagrada, é um néctar dos deuses, ou coisas desse tipo. Pois saiba que para muitos povos ela era exatamente isso, uma bebida sagrada. Nesse texto vamos apresentar um breve compilado sobre a sacralidade da cerveja para os povos nórdicos, também conhecidos como vikings (séculos V a XII).

As bebidas alcoólicas sempre tiveram um papel importante na vida dos humanos desde a Pré-história. Para esses povos a cerveja possuía um caráter sagrado. Para os sumérios os primeiros fermentados de cereais na Mesopotâmia foram ofertados pela deusa Ninkasi. Consumir cerveja simbolizava beber o corpo de Ninkasi e celebrar a vida que ela oferecia como dádiva. Para os gregos e romanos o vinho, consagrado ao deus Dionísio/Baco, era além de uma bebida sagrada, um produto comercial (CAMPOS, 2015).


Para o nórdico não existia uma separação entre laico e sagrado. Todos os atos, assim como o de beber, eram atos mágicos, feitos em comunhão com os deuses. Beber representava uma ligação direta com as suas divindades e suas crenças. Ser pagão era desempenhar um papel de apreciador de bebidas (LANGER; CAMPOS, 2012). A cerveja era utilizada em rituais e como um meio de acesso aos deuses (CAMPOS, 2015).


A relação que tanto deuses como humanos estabeleciam com as bebidas alcoólicas possuía um caráter sagrado que estava presente desde a escolha dos ingredientes até o próprio ato de beber. E no como os deuses ofertaram essas bebidas aos homens, mesmo que em alguns casos de maneira não intencional (CAMPOS, 2015).


O grão básico cultivado durante a Idade Viking e o período medieval na Escandinávia era a cevada (WARD, 2005). A cerveja produzida possuía sabor e coloração diferentes das equivalentes atuais, já que não possuía conservantes e clarificantes. Além da cerveja outras bebidas fermentadas eram consumidas, como vinhos, hidromel e cidras (LANGER; CAMPOS, 2012; McCOY, 2019).


Segundo Ward (2005), deve-se notar que, embora as palavras modernas ‘cerveja’ e ‘ale’ sejam hoje quase intercambiáveis, há boas evidências de que as duas bebidas eram muito diferentes no seu surgimento no Norte da Europa. As ale (ealu ou öl, em nórdico antigo) seriam produzidas a partir de grãos maltados. Já as björr seriam bebidas alcoólicas doces, podendo se referir inclusive às cidras.


A cerveja björr era uma bebida cotidiana utilizada em substituição à água que era veículo condutor de doenças. Durante a sua elaboração era possível eliminar as impurezas e possuía um teor alcoólico baixo (de 3 a 5 graus) (WARD, 2005; LANGER; CAMPOS, 2012; CAMPOS, 2015, 2020). O consumo de cerveja era uma maneira de hidratar-se sem adoecer, daí a explicação para o seu consumo por todas as pessoas, todos consumiam cerveja no dia-a-dia: para acompanhar as refeições, para saciar a sede depois de lavrar o campo, ou nos barcos, enquanto se faziam as viagens. A cerveja foi, portanto, a bebida mais consumida na Era Viking (CAMPOS, 2020).


A cerveja consumida tanto pelos vikings como anglo-saxões era um fermentado rápido de cereais, levedura e ervas aromáticas. As ervas escolhidas eram usadas para garantir a longevidade, textura, cor, aroma e sabor do produto, bem como eram ervas medicinais e de uso mágico, que eram consagradas aos deuses que protegiam a bebida e quem a ingerisse. Uma das ervas mais utilizada era a erva-de-São João ou hera-terrestre (Glechoma hederacea) de sabor amargo e rica em ácidos fenólicos e taninos antioxidantes e conservantes naturais, além de outras ervas como: a erva-de-são-pedro (Tanacetum balsamita), o marroio (Marrubium vulgare), a mil-folhas (Achilea millefolium). Algumas dessas ervas, como a artemísia (Artemísia abisinthium), a crista-de-galo (Heliotropicum indicum) e a urtiga (Urtiga dioica) tem potencial alucinógeno (WARD, 2005; LANGER; CAMPOS, 2012; CAMPOS, 2015, 2020; McCOY, 2019). Já a utilização do lúpulo (Humulus lupulus) se popularizou apenas após a publicação da obra da freira beneditina Hildegard Von Bingen (1098-1179), Livro das Propriedades das Várias Criaturas da Natureza, publicado em 1167 (OLIVER, 2020, p. 503).


A elaboração das bebidas era uma tarefa feminina e as mulheres se responsabilizavam por todo o processo e deviam cuidar para que as despensas estivessem sempre bem abastecidas de ingredientes tanto para a elaboração da bebida de todos os dias como também para as festas (WARD, 2005; LANGER; CAMPOS, 2012; CAMPOS, 2015). A rainha era responsável por portar a taça de bebida simbolizando os laços de fidelidade entre os guerreiros. Esta cerimônia da rainha servindo a bebida é parte de um ritual que confirma o governo do rei e cimenta a ordem social dos seus seguidores. A ordem em que cada um é servido mostra a hierarquia entre os participantes, com o rei vindo primeiro, depois os homens de classe mais alta e, finalmente, os mais jovens. A figura da rainha ou princesa poderia inclusive substituir o rei ou líder ausente no banquete (WARD, 2005; LANGER; CAMPOS, 2012).

Beber cerveja era particularmente importante para vários festivais religiosos sazonais, como: após a colheita, próximo ao solstício de inverno e no meio do verão. Essas festas continuaram a ser celebradas após a introdução do cristianismo, embora com novos nomes. Registros históricos mostram que o consumo de cerveja nesses festivais era muito importante: a Lei de Gulaþing exigia que os agricultores em grupos de pelo menos três pessoas preparassem cerveja para ser consumida nas festas: Todos os Santos (1 de novembro - Solstício de Inverno), Natal (25 de dezembro - Yule), e na festa de São João Batista (24 de junho - Solstício de verão) (WARD, 2005).


No centro do salão, tanto celtas quanto germanos mantinham uma grande cuba contendo bebida, simbolizando a produção no outro mundo, conectado a diversas narrativas mitológicas. Cerveja e hidromel eram comumente servidos em chifres de gado. Sim, eles bebiam utilizando chifres como copos! Isso não é uma invenção. Uma vez que um chifre de bebida não pode ser colocado na mesa enquanto ainda há bebida dentro dele, seu conteúdo deveria ser esvaziado rapidamente ou então passado ao redor da mesa. Existia uma ritualização na forma de beber. Se bebia por rodadas, o chifre de beber deveria passar em círculos ou sucessivamente de uma fila para a seguinte. Um dos momentos principais do banquete era o brinde, primeiro aos deuses, posteriormente em memória de seus parentes e após o brinde ao rei (WARD, 2005; LANGER; CAMPOS, 2012; McCOY, 2019).


Uma das figuras mais importantes da mitologia nórdica foi Aegir, um gigante Comandante do Mar e respeitado cervejeiro para os deuses de Asgard. No seu salão subaquático chifres de beber magicamente se enchiam com a melhor cerveja e hidromel (BUMBAR, 2016). Odin dizia que a cerveja de Aegir era a melhor de todos os Nove Mundos. O Mestre do Mar fazia a cerveja junto com suas nove filhas no maior caldeirão já feito. Este enorme tanque de cerveja entrou em posse de Aegir quando os deuses uma vez se sentaram para uma refeição festiva e a mesa ficou mais ou menos vazia. Quando eles perguntaram a Aegir onde seria o banquete, ele disse que não poderia servir comida sem cerveja e que não tinha nada para preparar. Então Thor saiu em missão para roubar o enorme caldeirão do Gigante Hymir e deu a Aegir como um presente. Desde aquele momento, nunca faltou cerveja no famoso salão submarino (Ward, 2005; BUMBAR, 2016; GAIMAN, 2017).

Em alguns poemas (Alvísmál) citam que a intoxicação provocada pelo álcool e ervas proporciona a ligação com os deuses. Sintomas como a perda momentânea dos sentidos, a ausência de racionalidade, a alteração de consciência, os rompantes de felicidade, conectam os homens aos deuses, à que estes poderiam se embriagar tanto ou mais que os humanos ‘reconhecer-se mais bêbado do que o sábio Odin’ (CAMPOS, 2015).


O ato de beber era tão sagrado para os nórdicos que era bem comum encontrar runas entalhadas nos chifres de beber como sugere Karlsson (2018) que se deve entalhar no utensílio a sequência Ansuz – Laguz – Uruz – ALU, para proteção.


Recentemente, um copo cerâmico foi encontrado na Dinamarca com essas mesmas runas formando a palavra Alu no fundo do recipiente. O objeto foi datado da Idade do Ferro, entre 200 a 500 a.C. A conexão entre embriaguez e runas pode ter sido popular. Alguns pesquisadores acreditam que se trata da palavra cerveja para os povos da Idade do Ferro, mas também pode significar poder, proteção, força, e estando em um copo, poderia representar ‘muito poder com um copo de cerveja’. Também faz referência ao deus Odin, o que “pode remeter à conexão de êxtase e sagrado relacionado aos rituais com bebidas e mitos do deus caolho” (LANGER, 2019).


O poema Sigrdrífumál (estrofes 7 e 19) também indica o uso de runas entalhadas nos cifres de beber. No poema a valquíria Sigfrida ensina ao rei como entalhar uma runa no chifre de beber e no dorso da mão para sua proteção “No chifre tu entalharás, e nas costas da mão, e marcarás com o prego Naud”, e posteriormente em outra estrofe cita que existem runas de cerveja. Dessa forma, diferentemente da importância que atribuímos às bebidas nos dias atuais, como entretenimento e produto comercial, para os nórdicos e outros povos na antiguidade e medievo, as bebidas tinham uma conexão profunda com o sagrado. Para eles tanto o ato de fabricar, beber e se embebedar eram um ato mágico, uma forma de se conectar com o divino. Então, da próxima vez que levar um copo a boca, ou fizer uma brasagem, lembre-se que que alguém lá em cima (ou do lado, ou embaixo) pode estar olhando por você.


Se quiser, você também pode assistir o vídeo que fizemos sobre o tema no nosso canal do Youtube:


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BUMBAR, M. Aegir, the Norse Ruler of the Sea who brew the best beer in all the Nine Worlds. Lord of the Drinks. 2016. Disponível em: https://lordsofthedrinks.com/2016/01/12/aegir-the-norse-ruler-of-the-sea-who-brew-the-best-beer-in-all-the-nine-worlds/ Acesso em: 15 de agosto de 2020.

CAMPOS, L. A sacralidade que vem das taças: o uso de bebidas no Mito e na Literatura Nórdica Medieval. Revista Brasileira de História das Religiões. v. 8, n. 23, p. 97-107. 2015. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/article/view/29528. Acesso em: 15 de agosto de 2020.

CAMPOS, L. Cinco erros sobre bebidas e alimentos da Era Viking. Blog do NEVE. 2020. Disponível em: http://neve2012.blogspot.com/2020/01/cinco-erros-sobre-bebidas-e-alimentos.html. Acesso em: 15 de agosto de 2020.

GAIMAN, N. Mitologia Nórdica. Rio de Janeiro: Intrínseca. 2017. 288 p.

KARLSSON, T. Uthark: o lado noturno das runas. São Paulo: Penumbra. 2018. 208p.

LANGER, J. Nova inscrição rúnica é descoberta na Dinamarca. Blog do NEVE. 2019. Disponível em: http://neve2012.blogspot.com/2019/03/nova-inscricao-runica-e-descoberta-na.html Acesso em: 15 de agosto de 2020.

LANGER, J.; CAMPOS, L. Brindando aos Deuses: Representações de Bebidas na Era Viking, no Cinema e nos Quadrinhos. Revista De História Comparada, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 141-164, 2012. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/RevistaHistoriaComparada/article/view/62. Acesso em: 15 de agosto de 2020.

McCOY, D. Viking Food and Drink. Norse Mythology for Smart People. 2019. Disponível em: https://norse-mythology.org/viking-food-drink/ Acesso em: 15 de agosto de 2020.

OLIVER, G. (Ed.). O Guia Oxford da Cerveja. São Paulo: Blucher, 2020.

WARD, Christie. Alcoholic beverages and drinking customs of the Viking Age. The Viking Answer Lady, 2005. Disponível em: http://www.vikinganswerlady.com/drink.shtml. Acesso em: 15 de agosto de 2020.





bottom of page