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A cerveja na Idade Média


Salve nobres!

Na sua série de posts sobre a História da Cerveja, publicados no site italiano Giornale della Birra (La birra, protagonista nella storia), Giovanni Messineo afirma que os primeiros testemunhos do consumo de cerveja na Europa remontam ao século VII a.C. (ânfora encontrada em Kulmbach, na atual Alemanha). Porém, a expansão do Império Romano para além das fronteiras naturais da Península Itálica (a partir do século I d.C.) e a influência da cultura greco-romana sobre toda a Europa popularizaram o consumo de vinho ao mesmo tempo em que o consolidavam como a bebida por excelência das classes nobres. Cultivado a partir de colônias gregas estabelecidas no sul da península a partir ainda do século VIII a.C., como explica Tom Standage (2005, p. 47), a partir de 146 a.C. a península italiana tornou-se a principal região produtora de vinhos do mundo:


As pessoas adotavam o hábito de beber vinho, assim como outros costumes romanos, em qualquer lugar por onde o governo de Roma se estendesse – e até além. Bretões ricos deixaram de lado cerveja e hidromel em favor de vinhos importados de lugares longínquos como o mar Egeu; o vinho italiano era embarcado para tão longe como o sul do Nilo e o norte da Índia. No século I d.C. a produção nas províncias romanas do sul da Gália e da Espanha foi acelerada para atender ao ritmo da demanda, muito embora os vinhos italianos ainda fossem considerados os melhores. (STANDAGE, 2005, p. 47/48).

Ao longo dos séculos IV e V d.C. numerosas tribos germânicas produtoras e consumidoras de cerveja atravessaram o Reno e o Danúbio, penetrando no território do Império Romano, convertendo-se ao cristianismo e adotando seus costumes. Como explica Tom Standage, houve uma fusão cultural entre as tradições romanas, cristãs e germânicas à medida em que os novos governantes substituíam os romanos: “Um exemplo de continuidade foi justamente a sobrevivência generalizada da cultura mediterrânea apreciadora de vinhos, que estava suficientemente enraizada a ponto de sobreviver a essa transição de seus antepassados gregos e romanos”. (2005, p. 55) Apesar de não abandonar completamente o seu hábito de beber cerveja, as suas classes dirigentes também adotaram o consumo de vinho como forma de distinção. Dessa forma, a cerveja ficou marcada como bebida de segunda classe. Giovani Messineo cita São Cirilo de Alexandria que, no século V d.C., descrevia a cerveja como uma “bebida fria e turva dos egípcios, causa de doenças incuráveis”. Enquanto o vinho, por outro lado, segundo os Salmos “alegra o coração do homem”.


Porém, o traço característico distintivo da História da Cerveja durante a assim chamada Idade Média (por convenção, entre os séculos V e XV) parece mesmo ser a sua relação com a Igreja Católica.


A relação entre os monastérios e a produção de cerveja foi duradoura. Alguns monges se especializaram na sua produção e formaram uma categoria profissional estimada que expandiu seus conhecimentos sobre o processo de fabricação de cerveja, melhorando assim a qualidade das cervejas dos monastérios. A cerveja era o único alimento consumido durante os períodos de jejum. E, para sustentar os monges, tinham que ser bem encorpadas. De onde vem a expressão de que cerveja é “pão liquido”. Alguns desses mosteiros também serviam como pouso para viajantes. A esses hóspedes também era oferecida a cerveja “da casa”. Assim, os monges foram os primeiros pesquisadores da cerveja, introduzindo inclusive, a ideia da conservação a frio da bebida.


Os Concílios de Aachen ocorridos entre 816 e 819, foram um marco na regulamentação da vida monástica no Reino Franco. Foi durante esses concílios que a Regra de São Bento, criada em 529 por Bento de Núrsia (480-547) para regular a vida monástica na abadia de Monte Cassino, na Itália, foi declarada a norma universalmente válida para as comunidades de monges e freiras. O espírito da Regra de São Bento resume-se em dois pontos: o lema da Ordem de São Bento (pax, ou paz) e o princípio Ora et Labora (Reza e Trabalha), síntese da vida monástica. Todas as ordens fundadas nos séculos seguintes foram organizadas de acordo com os princípios desta regra. As ordens mendicantes fundadas no século XIII, foram as primeiras a divergir desses princípios. No Concílio de 816 se estabeleceu também que a ração quotidiana de cada monge era um pint (cerca de meio litro) de boa cerveja.


Não por acaso, os primeiros e até hoje mais famosos, monastérios produtores de cerveja pertenciam à Ordem Beneditina. Como os mosteiros bávaros de Weihenstephan (fundado em 1040 e a mais antiga cervejaria do mundo ainda em funcionamento); Weltenburger (fundado em 620, mas que passa a fabricar cerveja apenas a partir de 1060); Weissenohe (fundado por volta de 950); e St. Emmeran (fundado por volta de 739). Ou o mosteiro suíço de St. Gallen (fundado em 613).


Em 1119 surge a Ordem Cisterciense, que tem esse nome por ter sido estabelecida na Abadia de Cister, localizada na cidade de Saint-Nicolas-les-Citeaux, na Borgonha. Era uma ordem beneditina reformada que criticava o relaxamento da regra beneditina e buscava retomar a sua observância. A ordem terá um papel importante na história religiosa do século XII, vindo a impor-se em todo o Ocidente por sua organização e autoridade. Aos cistercientes pertencia a abadia de Orval, na Bélgica, fundada em 1132.


Aproximadamente 540 anos depois, a Ordem Cistercience se divide em duas. Em 1662, é criada a Ordem dos Cistercienses Reformados da Estrita Observância (OCSO) por Armand Jean le Boutthillier de Rancé (1626-1700). Mais comumente conhecidas como Ordem Trapista, por ter sido fundada na Abadia de Notre Dame de La Trappe, constituída em 1140, em Soligny-La-Trappe, no noroeste da França. Seu apelido, portanto, ao contrário do que pode fazer imaginar, não tem nada a ver com “trapos” ou “farrapos”. Como beneditinos, os monges trapistas seguem o princípio fundamental da Regra de São Bento: ora et labora. E fazem 4 votos religiosos: de pobreza, castidade, obediência e estabilidade. Por esse último, os monges trapistas se comprometem a viver no mesmo mosteiro até a morte. Vivem em grande austeridade e silêncio, afastados do mundo e voltados para a busca continua da união com Deus. Por isso, via de regra, as comunidades trapistas são localizadas fora das cidades. E os monges vivem dos frutos da sua atividade agrícola.


Foi também nos monastérios católicos que se começou a fazer uso do lúpulo na produção das cervejas. Antes, em seu lugar era comum usar uma mistura de ervas que servia para aumentar o tempo de conservação da cerveja e para torná-la mais aromática chamada gruit. As ervas que o compunham eram a murta de Brabante (erva principal), alecrim selvagem, folhas de louro, aquiléia mil-folhas e resinas de coníferas. Apesar de fácil de fazer, o gruit não era acessível a qualquer cervejeiro. Datam do século IX os primeiros decretos que concediam o seu monopólio aos mosteiros (os gruitrecht). Segundo Giovani Messineo, mosteiros, bispos e outros detentores de direitos sobre o gruit também foram autorizados a conceder o usufruto da mistura para outros produtores, mediante taxa. Dessa forma, a compra e venda de direitos sobre o gruit se transformou em uma espécie de imposto indireto sobre a cerveja, gerando uma receita significativa para a Igreja Católica.


A lupulatura já era conhecida desde o século VIII. Em 768, Pepino, o Breve, Rei dos Francos entre 751-768, concede plantações de lúpulo à abadia beneditina de Saint-Denis, em Paris. (http://www.cervejasdomundo.com/EraMedieval.htm). Mas, parece ter sido a freira beneditina Hildegard Von Bingen (1098-1179), mestra do mosteiro de Rupertsberg na cidade de Bingen am Rhein, na Alemanha, que popularizou a utilização do lúpulo. No seu tratado de medicina naturalista intitulado Livro das sutilezas das várias naturezas da criação (ou Livro das propriedades das várias criaturas da natureza, dependendo da tradução), escrito entre 1151 e 1158, ela afirma que o lúpulo seria um eficiente conservante natural para bebidas: “O lúpulo é quente e seco, tem umidade moderada e não é muito útil para beneficiar o homem, porque faz crescer a melancolia no homem, entristece a sua alma e oprime seus órgãos internos. Mas também, como resultado do seu amargor, ele mantém algumas putrefações fora das bebidas, às quais pode ser adicionado para que durem muito mais tempo”. Com muita justiça, ela seria canonizada em 1584.


Em 1364, Carlos IV (imperador do Sacro-Império Romano Germânico entre 1316 e 1378), promulgou o Novus Modus Fermentandi Cervisiam, que estabelecia o novo modo legal de brassagem, com recurso ao lúpulo. Mas, a mudança levou séculos porque, por um lado, havia uma tendência a querer preservar costumes antigos e, por outro, havia o sabor amargo do lúpulo. Uma cerveja aromatizada com o gruit era muito mais doce do que uma cerveja lupulada. Como ressalta Messineo, a transição gruit para o lúpulo também se tornou uma opção político-religiosa. Não havia impostos a pagar para o Papa em relação ao lúpulo.


Mas não apenas nos mosteiros se produzia cerveja durante a Idade Média. Como explica Garret Oliver no verbete sobre História da Cerveja do recém-publicado Guia Oxford da Cerveja (2020, p. 504), o vinho chegou à Inglaterra primeiro com os conquistadores romanos (c. 43 d.C.) e mais tarde com a conquista normanda de 1066, por Guilherme II. Por influência romana e normanda, a sociedade britânica se separou em uma elite degustadora de vinho e uma massa bebedora de cerveja.


A cerveja representou uma parte essencial da dieta medieval inglesa, em particular, e europeia, em geral. A quantidade exata de cerveja ingerida diariamente não é conhecida, mas segundo registros da Catedral de São Paulo (de Londres) do final do século XIII, poderia chegar a um galão (aproximadamente 4,5 litros) diário por pessoa. Uma afirmação amplamente repetida é a de que o grande consumo de cerveja se devia ao fato de que a água não era segura para a saúde. A cerveja seria mais acessível e saudável, uma vez que o seu método de preparação (por meio da fervura) eliminaria as impurezas da água. Mas isso seria o que o blogueiro norte-americano de História da Alimentação Jim Chevalier, denomina de “O Grande Mito Medieval da Água”. O jornalista britânico Martyn Cornell aborda essa questão no artigo intitulado Was water really regarded as dangerous to drink in the Middle Ages?, publicado no seu site Zythophile, expondo as pesquisas de Chevalier.


Segundo Chevalier, o consumo de água certamente era mais difundido do que muitos comentaristas modernos parecem acreditar, principalmente pelos menos abastados:


“Não há nenhuma razão específica para acreditar que as pessoas da época bebiam proporcionalmente menos água do que hoje; em vez disso, como a água normalmente não era vendida, transportada, tributada etc., simplesmente não haveria razão para registrar seu uso. As pessoas da época preferiam bebidas alcoólicas? Provavelmente, e pela mesma razão que a maioria das pessoas hoje bebe outros líquidos além da água: variedade e sabor.”


Ou seja, durante a idade Média, assim como durante toda a existência da humanidade, a água era a bebida mais consumida. Simplesmente porque era gratuita. Ainda que a contaminação da água fosse uma certamente preocupação, as pessoas tinham bom senso e discernimento suficiente para saber detectar e evitar águas lamacentas, pantanosas ou turvas, que poderiam estar contaminadas. E se as pessoas preferiam beber cerveja ou vinho não era necessariamente porque a água era ruim. Mas porque gostavam do seu sabor e efeito.


Chevalier questiona também a ideia de que o consumo de cerveja pudesse chegar a um galão diário por pessoa. Com a exceção, talvez, de monges, cônegos e trabalhadores em instituições religiosas. Segundo ele, o país simplesmente não poderia ter cultivado grãos suficientes para manter esse consumo e ainda atender à demanda por pão. Fora de grandes instituições como mosteiros, cidades ou grandes vilas, durante a Alta Idade Média a produção de cerveja provavelmente dependia geralmente de chefes de família com um ocasional excedente de capital para comprar alguns grãos maltados, preparar um lote de cerveja e espetar a tradicional vassoura do lado de fora da porta da frente para que seus vizinhos viessem beber um pint. Dessa forma, esse fato parece indicar para o autor que o álcool era mais uma delícia do que uma ocorrência diária regular.


Como a cerveja azedava poucos dias após a fabricação, era necessária uma produção constante para atender à demanda. Portanto, a cerveja era produzida em grandes quantidades. As mulheres se ocupavam da gestão da casa e, entre as inúmeras tarefas que deviam desenvolver, fazia parte dos afazeres domésticos também a produção da cerveja.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CORNELL, Martyn. Was water really regarded as dangerous to drink in the Middle Ages?. Zythophile. Disponível em: http://zythophile.co.uk/2014/03/04/was-water-really-regarded-as-dangerous-to-drink-in-the-middle-ages/

CORNELL, Martyn. A short history of hops. Zytophile. 2009. Disponível em: http://zythophile.co.uk/2009/11/20/a-short-history-of-hops/. Acesso em 25/05/2021.

COSTA, Marcos Nunes. Mulheres Intelectuais na Idade Média: Hildegarda de Bingen – entre a medicina, a filosofia e a mística. Trans / Form / Ação. Marília, v. 35, P. 187-208, 2012.

MARTINS, Maria Cristina da Silva. Hildegarda de Bingen: Physica e Causa et Curae. Cadernos de Tradução. Porto Alegre, p. 159-174, Edição Especial 2019.

MESSINEO, Giovanni. La birra, protagonista nella storia - capitolo 2. Giornale della Birra. 2020. Disponível em: <https://www.giornaledellabirra.it/storia-di-birra/tra-il-sacro-il-vino-ed-il-profano-la-birra/>. Acesso em: 22 de julho de 2020.

OLIVER, Garret (edição). O Guia Oxford da Cerveja.São Paulo: Blucher, 2020.

RISSANEN, Mika; TAHVANAINEN, Juha. Storia dell’Europa in 24 pinte: dieci secoli di birra. UTET, 2018.

STANDAGE, Tom. A história do mundo em 6 copos. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.




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