Salve nobres,
Nesse texto, a nossa bióloga, Bere Chiavegato, fala sobre a biologia e a história da planta preferida de nove entre dez cervejeiros: o lúpulo.
O lúpulo (Humulus lupulus L., 1753) pertence à família Cannabaceae. Sim, ela é uma prima distante da cannabis sativa. É uma liana (grupo de plantas que germinam no solo durante toda a sua vida e necessitam de um suporte para manterem-se eretas, também conhecidas como trepadeiras), dioica (que apresenta flores masculinas e femininas), perene, herbácea, nativa da Europa, Ásia ocidental e América do Norte. Cresce no início da primavera e definha restando somente o rizoma (caule subterrâneo) no inverno. Floresce no verão, frutifica no outono, e as flores são polinizadas pelo vento. Ela cresce espontaneamente nas margens dos cursos d'água. As condições mais favoráveis para o seu cultivo são encontradas entre os paralelos 35 e 55 de latitude norte ou sul. O clima não deve ser muito quente, nem excessivamente frio ou úmido. Os invernos devem ser bem longos e os verões amenos e chuvosos.
O seu nome genérico é uma latinização do termo germânico para lúpulo. Já o termo lupulus significa "pequeno lobo" e se refere à tendência da planta de abraçar outras plantas, como o lobo faz com ovelhas e outras presas.
As variedades de lúpulo podem ser divididas em: amargor e aroma. Lúpulos de amargor são ricos em α-ácidos e são acrescentados no início da ebulição. Os α-ácidos têm efeito antibiótico e favorecem a atividade exclusiva da levedura durante a fermentação da cerveja. Lúpulos de aroma contêm β-ácidos e produzem sabor e aroma à cerveja, são adicionados ao final da fervura, podem oxidar e dar origem a compostos como o dimetilsulfeto (DMS), que é considerado um off-flavour (uma nota sensorial não desejada) na maior parte dos estilos de cerveja.
Muitas variedades estão no meio termo e são utilizadas para ambos os fins. Os chamados “lúpulos nobres” apresentam uma relação de alfa-ácidos e beta-ácidos de 1:1, além de elevados níveis de óleos essenciais. São quatro as variedades conhecidas até o momento: Hallertauer Mittlefrüh, Tettnanger, Saaz e Spaltz.
Essas propriedades do lúpulo são graças a presença da lupulina. Uma glândula resinosa localizada nas brácteas presentes na inflorescência feminina – também chamadas de cones. Essas glândulas secretam uma substância amarela composta de α-ácidos, β-ácidos, de polifenóis e vários óleos essenciais, que dão aroma e sabor característico a cerveja.
Além disso o lúpulo possui propriedades medicinais por presença de fito estrogênios, usados em tratamento da menopausa e TPM. O lúpulo possui também propriedades sedativas, hipnóticas e bactericidas para uso tópico. Tradicionalmente, eles têm sido usados para neuralgia, insônia, excitabilidade, priapismo, colite mucosa, topicamente para úlceras crurais e, especificamente, para inquietação associada com cefaleia por tensão nervosa e / ou indigestão.
O lúpulo também pode ser cultivado como trepadeira ornamental em jardins em áreas subtropicais e temperadas e é usado em pequena escala na alimentação.
O seu uso mais conhecido é justamente como ingrediente da cerveja. Dando a essa o sabor amargo, aromas variados e funcionando como um excelente conservante natural. Sendo considerado, por isso, o “tempero” da cerveja. O seu uso na cerveja (seja puro, seja como parte do gruit) era habitual desde a Antiguidade. A primeira citação do uso do lúpulo na elaboração de cervejas é encontrada na epopeia Finlandesa nacionalista do século XIX, Kalevala, que compila poemas e cantos populares que remontam a períodos anteriores a 1000 a.C. Nela se encontra uma fábula sobre a descoberta da fermentação pela deusa Osmotar ou Kapo. Considerada a Deusa da Cerveja:
“Osmotar, fabricante de cerveja, de cerveja curtidora.
Pegou, então, as sementes de cevada,
Pegou, então, seis sementes de cevada,
E de lúpulo, sete ramos
E, de água, cinco
Colocou a panela sobre o fogo
Fez ferver a mistura
Fez, assim, da cevada cerveja”.
O vestígio arqueológico mais antigo de produção de cerveja na Península Itálica é um vaso de terracota encontrado em uma tumba em Pombia, no Piemonte (datada do século VI a.C.) que, segundo os estudos arqueológicos, apresenta vestígios uma bebida escura, filtrada, feita com cevada e aromatizada com lúpulo.
Martyn Cornell afirma que é “surpreendentemente obscuro” quando exatamente o lúpulo passou a ser cultivado para ser usado na cerveja, em vez de ser apenas colhido nas florestas. Afirma o autor que os jardins de lúpulo aparecem em registros alemães da segunda metade do século IX em torno de Hallertau, na Baviera. Que é, ainda hoje, a maior área de cultivo de lúpulo no mundo. Patrick Sarnighausen, Valéria Sarnighausen e Alexandre Dal Pal, corroboram a informação, indicando uma data mais precisa. Segundo eles, as primeiras evidências do seu cultivo são datadas entre 859 e 875, na Abadia de Freisingen, também na Baviera. Victoria Blake, por sua vez, recua essa data em um século, afirmando que a primeira descrição escrita de um jardim de lúpulo vem de Hallertau e data de 768 d.C.
Todos os autores concordam, porém, que o primeiro documento a fazer menção ao uso do lúpulo na cerveja é uma série de estatutos sobre a administração de uma abadia escritos pelo abade Adalhard do mosteiro beneditino de Corbie, no vale do Somme perto de Amiens, norte da França, em 822. Outros autores afirmam que no ano de 768, Pepino, o Breve, Rei dos Francos (751-768), teria concedido plantações de lúpulo à abadia beneditina de Saint-Denis, em Paris. Segundo Victoria Blake, no século XI a cerveja lupulada era comum na França e, em 1268, o rei Luís IX (1226-1270) emitiu um decreto estipulando que, em seu reino, apenas malte e lúpulo poderiam ser usados para fazer cerveja.
Mas afirma Cornell que a melhor evidência do cultivo comercial do lúpulo seria do Norte da Alemanha e não antes dos anos 1100 ou 1200. Segundo Victoria Blake, no século XIV, um florescente mercado de lúpulo se desenvolveu em Nuremberg, Baviera, onde o lúpulo ficou conhecido como “ouro verde”, uma mercadoria preciosa e uma fonte de grande riqueza para produtores e comerciantes.
Certamente colaborou para a sua disseminação na produção cervejeira a obra da freira beneditina Hildegard Von Bingen (1098-1179), mestra do mosteiro de Rupertsberg na cidade de Bingen am Rhein, na Alemanha. Que, por meio do seu tratado de medicina naturalista intitulado Livro das sutilezas das várias naturezas da criação, escrito entre 1151 e 1158, foi a primeira autora a falar das propriedades conservantes da planta. Dizia ela: “O lúpulo é quente e seco, tem umidade moderada e não é muito útil para beneficiar o homem, porque faz crescer a melancolia no homem, entristece a sua alma e oprime seus órgãos internos. Mas também, como resultado do seu amargor, ele mantém algumas putrefações fora das bebidas, às quais pode ser adicionado para que durem muito mais tempo” (CORNELL, 2009).
Em 1364, Carlos IV (imperador do Sacro-Império Romano Germânico entre 1316 e 1378), promulgou o Novus Modus Fermentandi Cervisiam, que estabelecia o novo modo legal de brassagem, com recurso ao lúpulo. Mas a popularização do uso do lúpulo na produção de cerveja levou séculos. Em parte porque havia uma tendência a querer preservar costumes antigos e, em parte porque uma cerveja aromatizada com lúpulo era muito mais amarga do que uma aromatizada com o gruit.
Porém, como ressalta Giovani Messineo, a transição gruit para o lúpulo também se tornou uma opção político-religiosa. Datam do século IX os primeiros decretos que concediam o seu monopólio aos mosteiros (os gruitrecht). Segundo Messineo, mosteiros, bispos e outros detentores de direitos sobre o gruit também foram autorizados a conceder o usufruto da mistura para outros produtores, mediante taxa. Dessa forma, a compra e venda de direitos sobre o gruit se transformou em uma espécie de imposto indireto sobre a cerveja, gerando uma receita significativa para a Igreja Católica. Dessa forma, a Igreja Católica tinha o controle sobre a mistura de ervas que, durante 700 anos, constituiu um dos ingredientes amargos essenciais para se produzir cerveja “de acordo com a lei”. Por outro lado, não havia impostos a pagar para o Papa em relação ao lúpulo, mesmo em regiões controladas por católicos.
Mas, não por acaso a disseminação do uso do lúpulo ocorre primeiro na região que rompe primeiro com a Igreja Católica. No contexto da Reforma Protestante (entre 1516 e 1517), a substituição do gruit pelo uso do lúpulo na cerveja se tornou também um ato de rebelião contra a Igreja Católica. Wittemberg, cidade onde Martinho Lutero concluiu seus estudos de teologia e se tornou professor na Universidade local, era a capital da cerveja na região da Saxônia, com cerca de 150 cervejarias no início do século XVI.
Outro impulso para a disseminação do uso do lúpulo foi a lei promulgada em 1516 pelo o duque Guilherme IV da Baviera (que posteriormente viria a ser conhecida como Lei de Pureza da Cerveja, a Reinheitsgebot), que determinava que os únicos ingredientes utilizados na elaboração deveriam ser a água, a cevada e o lúpulo (a ação da levedura na fermentação alcóolica só vai ser descoberta pela ciência em 1835). Os comentaristas geralmente apontam como motivação principal para a promulgação dessa lei uma certa escassez da produção de trigo na região. Que, a partir de então, ficaria reservado para a produção de pão. Prestam mais atenção à determinação do uso de cevada. Porém, a meu ver, é mais importante prestar atenção à determinação do uso de lúpulo. Que pode ter sido colocada na lei não como forma de garantir a qualidade da cerveja, mas por motivos econômicos e políticos: como forma de escapar ao controle do gruit pela Igreja Católica.
A Grã-Bretanha, por outro lado, parece ter resistido ao uso do lúpulo por mais alguns séculos. Embora, como afirma Victoria Blake, alguns dos primeiros lúpulos devam ter atravessado o Canal da Mancha ainda no século IX. Como evidenciado pelos restos de um barco com uma carga de lúpulo encontrado abandonado em Gravaney, Kent, cuja datação por carbono das madeiras indica a década de 870 d.C. Diz a autora que em sua maioria, porém, os ingleses consideravam o lúpulo uma “erva daninha prejudicial que promove a melancolia”. Os reis Henrique VI (1422-1471) e Henrique VIII (1509-1547) proibiram completamente o uso de lúpulo em cervejas inglesas durante seus reinados. Este último, na década de 1530, justificou sua postura antilúpulo ao declarar o lúpulo um afrodisíaco que levaria seus súditos a um comportamento pecaminoso.
Mas, à medida em que o uso do lúpulo ia se sobrepondo ao uso do gruit na maior parte do continente, tornou-se cada vez mais difícil mantê-lo fora das cervejas inglesas. Chama a atenção Victoria Blake que um estatuto inglês do início do século XVII (1604) reclama das fraudes que ocorriam na venda de lúpulos importados, que vinham misturados com folhas, talos, pó, areia, palha, e toras de madeira entre outras coisas para aumentar o seu peso. Segundo esse documento, essas “grandes fraudes e enganos” aparentemente causavam à Inglaterra uma perda de receita anual no valor de 20.000 libras.
Se você quiser pode também assistir ao video que gravamos em 2020 sobre o tema e que está no nosso canal do Youtube. Mas avisamos que ee lá pra cá muita pesquisa já foi feita e as informações ali podem estar um pouco defasada.
BLAKE, Victoria Carollo. Hops. In: OLIVER, Garret (edição). The Oxford companion to beer. New York: Oxford University Press, 2012, p.618-625.
CORNELL, Martyn. A short history of hops. Zytophile. 2009. Disponível em: http://zythophile.co.uk/2009/11/20/a-short-history-of-hops/.
COSTA, Marcos Nunes. Mulheres Intelectuais na Idade Média: Hildegarda de Bingen – entre a medicina, a filosofia e a mística. Trans / Form / Ação. Marília, v. 35, P. 187-208, 2012.
MARTINS, Maria Cristina da Silva. Hildegarda de Bingen: Physica e Causa et Curae. Cadernos de Tradução. Porto Alegre, p. 159-174, Edição Especial 2019.
MESSINEO, Giovanni. La birra, protagonista nella storia - capitolo 2. Giornale della Birra. 2020. Disponível em: <https://www.giornaledellabirra.it/storia-di-birra/tra-il-sacro-il-vino-ed-il-profano-la-birra/>.
SARNIGHAUSEN, Patrick; SARNIGHAUSEN, Valéria C. R.; DAL PAI, Alexandre. O lúpulo e a oportunidade do agronegócio no Brasil. Anais da 6ª Jornada Científica e Tecnológica da FATEC de Botucatu. São Paulo. 2017. Disponível em: http://www.jornacitec.fatecbt.edu.br/index.php/VIJTC/VIJTC/paper/viewFile/1118/1547.
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