Salve nobres,
O documentário Como a Cerveja Salvou o Mundo, produzido e exibido pelo canal de televisão por assinatura Discovery Channel em 2011, é muito conhecido no meio cervejeiro brasileiro. Eu mesmo, por exemplo, fiquei sabendo da sua existência logo no primeiro dia de aula do meu curso de sommelier. Acredito que a imensa maioria das pessoas que trabalhem com cerveja artesanal no Brasil hoje já o tenha visto, pelo menos uma vez.
Como a Cerveja Salvou o Mundo apresenta um vôo panorâmico sobre a história da humanidade e da cerveja, tentando mostrar como essas duas histórias estão entrelaçadas. A sua narrativa gira em torno de uma ideia central: a de que desde a sua descoberta, a cerveja desempenhou um papel importantíssimo na história da humanidade. A cerveja teria mudado o rumo da história humana diversas vezes. Seria, em suma, “a maior invenção de todos os tempos”. Frase dita logo no início do documentário. Ao longo do documentário outras frases igualmente bombásticas (e polêmicas) são ditas. Tais como: “sem a cerveja ainda estaríamos vivendo nas cavernas”; ou “a cerveja pode ser considerada o “medidor oficial da história humana”; ou outra que propõe que a sigla a.C./d.C. deveria ser ressignificada para “antes da cerveja e depois da cerveja”. Propondo, com isso, que a invenção da cerveja seria um divisor de águas na história da humanidade mais significativo do que o nascimento de Jesus Cristo.
Além de ser muito assistido no meio cervejeiro, os apreciadores de uma boa cerveja também adoram citar essas afirmações, justamente porque a narrativa do programa dá à cerveja esse papel fundamental no desenrolar da história da humanidade. E talvez porque faça com que os cervejeiros fiquem se sentido historicamente importantes. E, talvez por isso, a galera saia por aí repetindo as informações do programa sem se perguntar se elas fazem sentido ou não. Porém, convém não reproduzir os argumentos apresentados no documentário como se fossem “a verdade” sobre a história da cerveja. E, menos ainda, sobre a história da Humanidade.
O Discovery Channel é um canal de televisão por assinatura criado em 1985, dedicado a apresentação de documentários, séries e programas educativos sobre ciência, tecnologia, história, meio ambiente e geografia. Pelo menos, em tese. Na prática, pelo menos hoje em dia, é um canal mais voltado para o entretenimento do que para conteúdo educativo. Hoje na grade do Discovery Channel predominam os reality shows como Largados e Pelados, Sobreviventes, Quilos Mortais, etc. E os chamados “mocumentários”, produções de ficção que utilizam a linguagem de documentários, como Caçadores de Mitos, World of Misteries, entre outros. Certamente, Como a Cerveja Salvou o Mundo se encaixa melhor nessa última categoria. Uma das características desse tipo de produção é justamente o título chamativo, inusitado e um tanto exagerado, feito para atrair a atenção e a curiosidade da audiência.
Não quero dizer, com isso que tudo que é afirmado no “documentário” é mentira. Algumas afirmações feitas ao longo do documentário são bastante conhecidas e documentadas. Como, por exemplo, o fato de que a cerveja está por trás da invenção da refrigeração artificial pelo físico e engenheiro alemão Carl Von Linde (1842-1934), no final do século XIX. Uma vez que as pesquisas de Von Linde para o desenvolvimento do método de resfriamento por liquefação de gás foram financiadas pela cervejaria irlandesa Guinness.
Mas, a minha ideia aqui não é tentar rebater a narrativa do “documentário” ponto por ponto, apontando aquilo que está certo e o que está errado. Até porque, para isso, eu teria que fazer pesquisas específicas sobre cada tema. Como por exemplo sobre aquilo que o documentário chama de “a Revolução da medicina antiga”, com o consumo da tetraciclina (antibiótico descoberto oficialmente somente em 1948), que demandaria uma pesquisa sobre história da ciência Antiguidade. Além de levar um tempo incalculável, tentar verificar a existência de fundamento histórico em cada afirmação feita no programa deixaria esse texto gigantesco e de leitura muito pesada. O problema que eu quero apontar aqui na narrativa do “documentário” é a sua intenção de fazer com que os fatos confirmem a ideia central da narrativa: a de que a cerveja mudou o rumo da história humana diversas vezes e que foi fundamental para a história da humanidade avançar. Para isso, os roteiristas lançam mão de estratégias narrativas e apresentam interpretação enviesadas de muitos fatos históricos, atribuindo à cerveja o papel de protagonista neles. Quando, na verdade, muitas vezes a cerveja pode ter sido uma das motivações para essas descobertas, mas não a única. E, em outras, ela não é um fator fundamental e chega mesmo a ser dispensável.
Como exemplo do primeiro caso, eu poderia citar a chamada Revolução Tecnológica Paleolítica, com a invenção da escrita, da matemática ou da roda, que o roteirista do documentário apresenta como desdobramentos e aperfeiçoamentos da produção de cerveja, mas que surgiram para resolver problemas gerais de registro, comunicação e deslocamento. E, no segundo caso, temos a invenção das pirâmides e o desenvolvimento da antiga civilização egípcia (que vai da unificação do Alto e Baixo Egito sob o primeiro faraó, em 3100 a.C. até a sua assimilação pelo Império Romano em 30 d.C.). Segundo o roteirista, “As pirâmides não teriam sido construídas e nem a civilização egípcia existiria sem a cerveja”. Mas, pode-se perfeitamente afirmar que se os trabalhadores das pirâmides não tivessem sido pagos em cerveja, se a cerveja não existisse, eles teriam sido pagos com outros gêneros. Querer atribuir o desenvolvimento de 3.000 anos de história a um único fator, no caso, a cerveja é o cúmulo daquilo que podemos chamar de monocasualismo. Quando, na verdade, nós sabemos que, sempre, vários fatores concorrem para que as coisas aconteçam de uma ou outra forma. Ou seja, afirmar que inexistência da cerveja impediria a existência das pirâmides ou da civilização egípcia, como afirma o narrador, é dar à cerveja um papel de fator fundamental que ela não tem.
Outras afirmações simplesmente não fazem sentido para alguém que saiba um pouco de história. Por exemplo, se afirma (aos 21 min.) que a grande demanda por cerveja até o século XVI foi o que deixou a Igreja Católica rica. Porque na Europa Medieval os monges detinham um certo monopólio da produção de cerveja. Porém, não eram só os monges que produziam cerveja naquela época. E, além disso, nem toda cerveja consumida vinha das igrejas. Havia também muita produção caseira. Pesquisadores da história da Igreja Católica, certamente, vão afirmar que ela tinha outras formas mais eficientes de acumular patrimônio. Como doações de nobres ou a venda das indulgências. Ferozmente criticada pelos reformadores protestantes do século XVI. Um pouco mais adiante se afirma que as pessoas iam à missa porque ganhavam uma cerveja na saída. Em mais de 20 anos de estudo de história, nunca ouvi falar nem li em lugar algum que os padres católicos agissem como traficantes de droga modernos. Dando uma “provinha” da cerveja ao final da missa, para viciar a população na bebida e ficar rica com isso! Que é, com outras palavras obviamente, o que os roteiros afirmam.
É uma estratégia muito utilizada por esse tipo de narrativa misturar fatos que são amplamente conhecidos, documentados e aceitos pela comunidade científica com novas “descobertas” sobre as quais ninguém nunca ouviu falar. Isso ajuda a dar a essas “descobertas” o mesmo status de conhecimento científico das outras afirmações. Assim, o público pensa que se as afirmações A, B e C estão corretas, então porque todas as outras também não estariam? Essa é uma estratégia narrativa muito utilizada também, hoje em dia, pelos disseminadores de fake news.
Seguindo a ordem cronológica proposta pelo “documentário”, outro fato é levantado para reafirmar a ideia de que as principais invenções da Humanidade ocorreram graças à cerveja. Segundo os roteiristas, o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna é marcado pelo fim do suposto monopólio da produção de cerveja pela Igreja Católica (que, como eu já afirmei acima, não existia). E os “empreendedores da cerveja” são apontados como os responsáveis pela criação do capitalismo moderno! Um dos entrevistados afirma textualmente (aos 22:48) que “a cerveja foi um fator crítico no desenvolvimento da economia, foi pioneira na criação de troca, comércio, bancos, finanças”. Nesse ponto, o roteirista parece estar se referindo à passagem da economia feudal que caracterizou a Idade Média para o capitalismo comercial, também chamado de mercantilismo, da Idade Moderna. Porém, a cerveja era apenas uma das muitas mercadorias comercializadas nessa época. Não foi a primeira e, provavelmente, não estava sequer entre as principais mercadorias comerciadas em volume. Basta lembrar que essa é a época do comércio de especiarias entre o Oriente e o Ocidente. Essas sim, historicamente relevantes para definir o curso de História.
A cerveja teria sido, então, a responsável pelo estabelecimento da base da medicina moderna ou do moderno sistema de saúde, nas palavras dos roteiristas. Aqui, é o trabalho de Louis Pasteur (1822-1895) e sua descoberta dos germes e bactérias que são colocados na conta da cerveja. Pela lógica dos roteiristas, uma vez que Pasteur utilizava a cerveja como estudo de caso (ao lado do leite e do vinho, mais comumente citados), logo todas as descobertas e invenções decorrentes dessa pesquisa também são graças à cerveja! Mais uma vez aqui a narrativa distorce os fatos para dar à cerveja uma importância muito maior do que ela efetivamente teve.
Nesse ponto da narrativa, assim como em outros, os roteiristas encadeiam causas e consequências como se as segundas fossem consequências necessárias das primeiras, numa espécie de Efeito Dominó. O termo é, inclusive, citado por um dos entrevistados do documentário, o Dr. Patrick Heyes (cientista de alimentos) que afirma que (logo aos 7 min.) as pessoas continuaram cultivando cevada para produzir mais cerveja. O que levou a uma série de “invenções em cadeia” que serviram para melhorar a produção de cevada, como a criação de novas tecnologias como o arado, irrigação, carroças, etc. Mas, há muito tempo que esse tipo de relação de causa e efeito já foi abandonado e é, inclusive, rechaçado pela história acadêmica, em prol da ideia que em História não existem causas e consequências necessárias. E que os fatos acontecem de uma determinada forma devido à concorrência de uma série de fatores (como eu já afirmei antes nesse texto). Bastando a mudança de algum desses fatores para que os fatos tivessem acontecido de outra forma.
A partir de um determinado ponto da narrativa, a história da Humanidade se transforma em História dos Estados Unidos. E o documentário vira de Como a Cerveja Salvou o Mundo para Como a Cerveja salvou os EUA. Com relação à história dos Estados Unidos, o roteirista chama a atenção para a importância da cerveja para a colonização da América, como alimento na viagem marítima dos colonizadores a bordo do Mayflower, em 1620. Nesse ponto, o narrador repete a afirmação muito citada de era preferível consumir cerveja a água. Essa é uma afirmação amplamente repetida com relação ao consumo de cerveja na Idade Média. O grande consumo de cerveja se explicaria pelo fato de que a água não seira segura para a saúde. A cerveja seria mais acessível e saudável, uma vez que o seu método de preparação (por meio da fervura) eliminaria as impurezas da água. Mas isso seria o que o blogueiro norte-americano de História da Alimentação Jim Chevalier, denomina de “O Grande Mito Medieval da Água”. Não me aprofundo no tema aqui porque no meu canal do Youtube você encontra uma live de uma hora sobre o assunto:
Pois, a explicação que já não servia para a Idade Média, serve menos ainda para o século XVII. Naquele momento, os navios já contavam com um carregamento de água potável para as suas viagens. E, na falta de água, se não houvesse cerveja, eles beberiam qualquer outra bebida. Mais uma vez, a cerveja não me parece desempenhar um papel fundamental aqui. Já está mais do consolidado na historiografia que um problema muito mais sério nas travessias do Atlântico em direção à América na Idade Moderna foi a falta de laranjas. Ou de qualquer fonte de vitamina C. Afirmar que os colonizadores não bebiam a água da América também me parece bem forçado. Até porque não se começa a produzir cerveja no mesmo dia em que se põe o pé em terra. Enquanto não terminasse de fermentar, eles iam beber o que? Uma vez que, segundo a narrativa do próprio documentário, foi justamente o fim do estoque de cerveja que fez com que o Mayflower aportasse onde aportou. Nesse ponto a narrativa se contradiz flagrantemente.
A essa altura, me parece desnecessário comentar como me parece forçada a importância atribuída à cerveja no episódio da Independência da América, apenas porque os patriotas se reuniam em tavernas. Ou a afirmação de que o atual hino dos Estados Unidos seria uma versão de uma canção de beber (drink song) do século XVIII. Mais do que não ter conhecimento específico sobre esse fato, ele me parece irrelevante para a História da Humanidade. Por outro lado, curiosamente, a narrativa não cita fatos históricos realmente importantes para a história da cerveja nos Estados Unidos, como a Lei Seca ou até mesmo a Revolução da Cerveja Artesanal. Aliás, não há ao longo de todo o documentário uma única referência ao movimento das micro-cervejarias norte-americanas.
Segundo a narrativa do documentário, a criação da indústria moderna (entendida como a automação dos processos) também acontece graças à cerveja. Em 1904, Michael Joseph Owens cria uma máquina de produção de garrafas de vidro. Que, obviamente, serviam para armazenar absolutamente todo tipo de líquidos, e não apenas para a cerveja, uma vez que ainda não existiam garrafas pet. Mas, uma vez que, segundo a narrativa do documentário, a primeira garrafa que ele produziu na sua máquina foi uma garrafa de cerveja, logo... mais uma vez a cerveja leva o mérito pela invenção. O narrador ainda afirma que a sua máquina de garrafas “foi a invenção mais significante do século XIX”, para tornar os méritos da cerveja ainda mais significativos. Deixando de lado o fato de que essa invenção não aconteceu no século XIX, não custa lembrar que o século XIX foi um século cheio de invenções. Para citar apenas uma, temos as ferrovias. Decida você o que foi mais importante para os desenvolvimentos históricos posteriores...
Outra afirmação que se utiliza da estratégia narrativa do “efeito dominó” é a que coloca na conta da cerveja o fim do trabalho infantil. Segundo a narrativa, a invenção da máquina de Owens, automatizando a indústria do vidro, teria acabado com o trabalho infantil uma vez que as crianças não teriam a qualificação necessária para operar as máquinas. Mesmo que essa afirmação tivesse algum fundamento, a automatização poderia ter acabado com o trabalho infantil na indústria de vidro, especificamente. Nos Estados Unidos, especificamente. Nesse ponto da narrativa não se faz mais distinção entre história mundial e história dos Estados Unidos, em um deslizamento discursivo de uma para a outra. E, infelizmente, o trabalho infantil não acabou até hoje.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eu quis fazer essa análise porque um dos meus campos de interesse e de atuação como historiador é aquilo que nas universidades de História chamamos de História Pública. Que é a análise dos tipos de narrativas históricas construídas fora da universidade e direcionadas ao grande público. Analisar essas narrativas é mais do que apontar quais informações estão corretas e quais não estão nas histórias que estão sendo contadas. Por isso, a minha intenção não era analisar cada uma das centenas de afirmações feitas ao longo do programa. Mais importante do que é isso é prestar atenção ao efeito que o autor da narrativa (no caso, o roteirista do documentário) quer provocar no público e quais as estratégias narrativas que ele utiliza para atingir seu objetivo. Por diversas vezes, ao longo do documentário, a narrativa é interrompida para mostrar a reação de surpresa de pessoas nos bares diante das “revelações” e “descobertas” do documentário. É essa mesma reação de surpresa que o roteirista quer provocar no espectador. E, para tanto, ele utiliza as estratégias retóricas de convencimento para as quais eu chamei a atenção, tais como: mesclar afirmações corretas e documentadas com novas “descobertas”; utilizar explicações do tipo “efeito dominó”; ou apenas fazer afirmações que o espectador não terá como confirmar se são verdade ou não naquele momento. E, sobretudo, apresentando afirmações e interpretações bastante enviesadas e discutíveis como se fossem “a verdade”, que por muito tempo ficou encoberta. É muito comum que esse tipo de narrativa se apresente como guardiã de “verdades históricas” nunca antes reveladas. Também essa é uma estratégia para atrair a atenção do grande público.
Ao mesmo tempo, essa análise nos ajuda a entender também qual a concepção de História que guia a narrativa. No caso de Como a Cerveja Salvou o Mundo, a História aparece como um encadeamento de causas e consequências necessárias (o que significa dizer que uma determinada causa só poderia ter um determinado resultado) que têm como primeira e única causa, a descoberta da cerveja há 10.000 anos atrás. Essa concepção de história já foi cientificamente aceita há, talvez, 150 anos. Mas hoje em dia, essa forma de conceber o movimento da História está muito distante da maneira cientificamente aceita de se produz o conhecimento histórico. Além disso, é sempre importante reforçar a ideia banal de que a cerveja é produto da História e não o contrário.
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